Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

folhasdeluar

Poesia e outras palavras.

folhasdeluar

Poesia e outras palavras.

Dias encantados

Encantam-me os dias transgressores...os dias em que dou frutos...
Aqueles dias em que a estrada é uma rota aberta
E a minha vontade exclui todas as morais...todas as pontarias e todos os alvos...
Encantam-me os dias em que fixo o olhar numa pedra...
Que depois atiro à água...e que provoca pequenas ondas...onde o meu espírito dança...
Encantam-me os dias em que não tenho planos...nem etapas...nem respeito pela verdade
Porque guardo para mim todas as verdades..as que quero e as que nem conheço...
Encantam-me aqueles dias límpidos...


Em que a minha vista é temperada pelo céu branco
E a redenção é uma coisa abstracta que os homens pintaram de várias cores...
Encantam-me os dias em que posso ver todas as coisas sem que o meu olhar se tolde
Em que me posso servir de mim como se fosse um campo infinito...
Onde vejo todas as cores que a terra me dá...
Porque que não tenho um lugar para me dirigir...nem um respeito para respeitar
Encantam-me os dias em que a fundura de uma verdade não me apoquenta
E em que a minha necessidade é apenas uma falta de necessidade
Encantam-me os dias em que sinto que entre a terra e o céu há um espaço livre
Para que a minha alma errante se fixe num destino...
Como um bago de uva que espera a maturação...

Somos uma pintura espreitando por uma janela fechada!

Há uma voz de ferro em brasa que se mistura com o frio dos recantos sombrios
Há uma ordem que vacila no caminho percorrido pelo espanto
Há violência na luz onde ardem os olhares... lívidos...calcinados...esquálidos...
Há na noite rasgões de luzes que escorrem pelas paredes debotadas
Há tentações nos escombros onde ombros seminus se cobrem de névoa
Madrugada...terra calcinada...mágico presságio de um arrependimento tardio
Humildes espantos... que sobem como fumo exalado por archotes inconscientes
Sangue que se derrete nas veias alumiadas por madeira seca
E vozes...e mais vozes...e os restos da noite sempre ali...sempre a escamar os dias...
E as criaturas a pairar...a cair-lhes a tinta pelo rosto...a invadir-lhes todos os poros
E as indecisões transcendentes que se misturam com pedras calcinadas
E as cobardias que se cozinham em gestos que o lume despreza
E se dispõem em mesas de mármore negro
E as tapeçarias de seda que se enrolam em segredos vermelhos...
E que rolam sobre adros que os pés não pisam
Todos os uivos vacilam...toda a razão se transcende...


Todas as paredes escondem rostos
E todos nos derretemos num velho esquecimento esverdeado
Em que as brasas que a névoa encobre são palavras ressequidas por presságios
Que nos dizem …e mostram ao nosso corpo que corre sôfrego até ao fim da rua
Que somos uma pintura espreitando por uma janela fechada!

Tudo é um agoniar de cores...

É o sol...é o espanto...são as manhãs que descem ligeiras
É o tempo...os ruídos....a terra coberta por corpos que dão semente
E é nessa mesma terra que iremos plantar o desassossego que nos adormece
São as ervas que se lamentam do calor...como mulheres presas em abraços que uivam
É o imenso detalhe do céu distante...é um segurar o choro...
É um amplificar da alma...é o dia infectado por mapas onde se multiplicam chãos
E as flores...as flores silvestres...as flores adormecidas...dissolvidas na natureza...
E as pessoas... comovedoramente cobertas por mantos que se desfazem em caminhos
Onde passam indiferenças...onde se mostram as melancolias...
Onde se multiplicam as gargantas...
Tudo é um agoniar de cores...tudo é um espelho que azeda os rostos..
E porque pouco profunda é a distância que cala a angústia...
Basta virar a página...basta torcer o pescoço e olhar a transparência dos corpos
Basta procurar o regresso aos sons de Março..à primavera...ao escorrer dos dias...
E mesmo que as horas sejam sombras indiferentes
E mesmo que o sol se desfaça em pó...e os pássaros suspendam o seu voo...
Mesmo assim toda a minha vontade correrá ao teu encontro...
Como se fosses a minha paisagem...que me encandeia com uma colorida impaciência...
Que zela por mim...como uma flor viçosa...ou um ramo mascarado de amor!

Onde pousarão os cantares das ideias?

Desabam cansaços como segredos que as folhas guardam
Por entre os ramos há palavras envolvidas pelas sombras
Que dizem que entre a terra e a mágoa há um abismo de sussurros saturados de homens
Os pés tornam-se rasgões cavados na terra seca...
Que se confundem com as paredes rachadas das montanhas
E as ervas cobertas de mágoa erguem-se perante a secura dos sentimentos
Os pensamentos atiram-se contra o coração...suicidam-se numa agonia estrondosa
E há um cheiro a tempestade...um abismo que abre a sua boca ao tédio...
Desafiando uma morte fresca espalhada sobre as carnes aflitas...
Como um desamparo...ou o desmoronar de um pesadelo...
A boca informe...o peito raso cheirando a figueiras selvagens...
Ninguém sente vontade de regressar às horas tardias..
Às horas suspensas nas folhas que os pesadelos tecem...
Aos cheiros das memórias que esfriam os corpos numa lágrima de fel
Onde pousarão os cantares das ideias?
Onde estará a derrota da alma que vive nessas ideias?
Que luz se exilará no escurecer da hora que se desmorona ?
Podemos regressar ao ar fresco...à chuva ácida...aos dias longínquos
Mas o nosso desamparo nunca terá uma migalha de tempo que lhe diga
Que os canteiros dos jardins irão florir...no dia em que a luz do sol se retirar..de nós!

Porque somos tudo o restará de nós

Bebi-te como uma noite que não arrefece...como um travo que me nasceu nos dedos...
Como uma suave brisa almofadada...que não faz perguntas..nem se gasta nas distâncias
Fragmentos de nós pululam pela maresia...como lunáticos dias sem direcção...
Porque somos apenas verdade...sem perguntas nem olhares hesitantes...
Porque somos olhos e carne...mãos e barcaças...marés e aves marinhas...
Porque somos tudo o restará de nós...um dia..

Podemos ser o alvo do tempo...

Vinham os corpos cavalgando sobre o eterno inicio do tempo
Queriam falar das coisas invisíveis...da escassez dos futuros
Das gerações que inventaram as palavras que nos povoam
Da insustentabilidade da seta que voa sem destino...sem alvo...
Como uma semente sem sentido...ou de sentido inverso...a semente que mata...
Podemos ser o alvo do tempo...os filhos da transgressão...
A estrada que retempera o cansaço da eternidade...
Mas temos um lugar fixo na imaginação de Deus...
Uma serventia qualquer...que não descortinamos...um povoar de terras estéreis...
Somos a vasilha cuja asa não podemos agarrar...uma verdade inalcançável
Um respeito que só usamos em casos de justiça...uma pontaria desafinada...
Em cada etapa comemos cores...bebemos fartamente o sofrimento...
E partimos...partimos porque precisamos preencher o espaço vazio que há em nós
Porque temos que saber até onde pode ir o nosso olhar...
Até onde podemos ser o bolbo que a terra espera para dar flor...
Ou para nos ocultar o destino sob uma pedra indistinta aos olhos mais atentos
Como se fôssemos uma música invisível em que só os insensatos acreditam...

Podes ser o mundo inteiro...que nada terás...

Trazes uma verdade que a fria manhã desmente
Trazes uma terra...uma ofensa..um desespero que te desconsola...
Nada te falta...nem antes nem depois do fim...
Porque só os dias contêm o fogo da imperfeição
Acalma-te... haverá uma hora em que acordarás
Um desconhecido que se mostrará...no dia em que a máscara cair...
Haverá uma fonte onde beberás o teu ânimo...leve...fresca...sensual...
Lá beberás todas as tuas imperfeições...e todos os teus fogos secarão...
O teu nome surgirá como uma ameaça ao consolo
Renascerás num corpo sem medos...iluminado por luzes que se queimarão em ti
E as fontes forçarão a passagem das suas águas...para que possas plantar a tua semente
Para que te possa socorrer dessa imperfeição que é um nome...
Um nome incapaz de dizer quem tu és...de te socorrer na aflição...
De te mostrar a esperança...
De te fazer regressar ao tempo em que a sombra se recortava na tua pele...
Sem medo de ser condenada...ou dissolvida numa abundância de vidas...
Podes ser o mundo inteiro...que nada terás...
Podes declarar que possuis todas as cores e todas as harmonias...que nada terás...
Nem os caminhos te dirão que és uma espécie de medo...uma notícia sem recorte...
Uma dissolução do Eterno!

Nós somos os frutos que mutuamente saboreamos!

Acordo para me lembrar que hoje é a noite em que a nossa almofada será feita de neve
Que todos os orvalhos terão a cor dos teus olhos...
E que todos os ventos te soprarão carícias amorosas...
Penso no teu respirar...nas mãos que a minha boca aquece...
No nascer de um gesto sobre o teu peito...
Numa madrugada em que te desfolhei como uma rosa insegura...
Depois.. partimos encostados a essa madrugada cambaleante de risos
A esse erguer de nós... boca sobre boca...como uma original manhã...
Como um procurar por ti... dentro de mim...
Como uma descomunal prece sem fundo...
Que me arrebatou como uma felicidade muda...porque os silêncios eram as palavras
Que irromperam do lugar mais profundo...coração e luz...
E porque a nossa história era o começo do luar...
Era a entrada para o jardim onde os versos nos contam alegrias...
E onde nós somos os frutos que mutuamente saboreamos!

Foste criado como se fizesses falta à vida...

Lembro-me que dos teus olhos escorriam lágrimas
Como se traçassem uma fronteira entre ti e a felicidade
Como se fossem um acaso da existência...uma norma a cumprir
Um ritual avassalador...como o firmamento numa noite sem luz
Onde estava a tua angústia nesse dia?
Onde estava a tua presença...a tua respiração...o teu inicio de vida?
Onde estava o ar que não respiravas..o rugido que quererias ter dado e reteste em ti?
Onde estava o teu firmamento desagregado...
Onde estava aquilo que faz de ti uma eternidade?
Serás tu capaz de te alimentar de tempo? De existir para além da tua liquidez?
Em tudo o que fazes há um rasgão na tua alma...
Em tudo o que respiras há uma superfície incandescente
Em todas as tuas forças está presente o último gesto...a última criação....
Em tudo o que crias está o último segundo...a lentidão da eternidade...
O tempo que te encheu de miragens...o fim dos acasos...o divino olhar...
Lembro-me que dos teus olhos escorriam lágrimas
Como se a beleza fosse algo impossível...
Como se tudo o que existe fosse como um ressuscitar de uma obra inacabada
Um sepulcro onde Lázaro se deita para sonhar com a Ressurreição
Porque não faltam verdades aos desesperados
Nem terra onde assentemos os pés...nem matéria que a beleza não possa admirar...
Espalham-se silêncios por esses teus olhos....contemplando sonhos inacreditáveis...
Mas..foste criado como se fizesses falta à vida...
Como se ela fosse impossível sem ti...e que sem o teu elo na corrente infinita
Onde os teus olhos desesperados se encontram contigo
Nada mais existiria por debaixo do tempo...nem início...nem fim....
Apenas restava um pesar profundo... chorando pela tua ausência!

Como se fosse essa esperança que temos que agarrar...

Sinto-te como sinto as ondas da beira-mar aos meus pés
Como se fosses essa espuma delicada que me chega como uma carícia
Como se fosses esse murmúrio que me olha sorrindo
E me faz sentir esse sentimento ansiado...
Como o voo de um pensamento ancorado num porto livre de tormentas...
Ou como um voo que se espraia numa ilha que olha um céu florido pelo canto da aves
Sinto-te como se acolhesse em mim todo o silêncio dos campos
Como se fosses uma luz reflectida na crueza da solidão.
Quero que me enchas de mar...de dias claros...
De encontros por onde possamos vaguear...
Observo a minha imagem sem nome...à luz suave do amanhecer...
E sinto que sou a liberdade...que tenho toda a liberdade...
E que sento o meu sorriso na tua face...como se vivesse em ti...
Como se vivesse nessa caverna transparente que és tu
De todos os lugares me chegam os teus passos
De todas as paisagens me olham as flores
Em todos os sítios me aconchegam as tuas carícias...
Seremos pois... uma incrustação comum...sentida...como um risco no olhar...
Seremos o dia..o nome...a luz que atravessa a clarabóia que nos abre o dia
Seremos a janela crua que olha o céu...esperando na noite o nosso encontro...
Como aves migratórias que voltam sempre ao mesmo lugar
Sorrimos aos cansaços...como letras amarelecidas pelo pólen das flores
E contemplamos todas as libertações que a alma nos mostrar
Teremos todos os banhos das águas de Agosto...todas as viagens...todas as árvores...
Mesmo as secas...as que apenas conservam os ramos gastos e vazios de folhas
Mesmo essas ainda enfeitam os campos...mesmo essas ainda luzem ao luar...
Como se fossem filhas de uma imaginação...ou a imagem de um lamento tardio...
Que se conserva perfilado perante a natureza...como uma esperança...
Como se fosse essa esperança que temos que agarrar...
E com ela subir todos os andares dos dias...até alcançarmos a nossa hora de amar!