Fomos o sol e a luz
(foto Vivian Maier)
Ouço-te como uma música...sinto-te a desembocar em mim
Há um arrepio que guardo dentro da tua fotografia
Um sorriso cristalino que me atravessa..
Como uma vertiginosa alma longínqua...guardo-te
Sei que a tua lembrança me espera ...serena lembrança
Lembro-me de te sentir na minha boca...é um lugar de memórias
Durmo enquanto me devoro...
Caio como uma árvore atingida por um raio...levanto-me..lentamente
Vejo-te ali...pantera negra...a devorar o meu rasto
As tuas mãos seguram a vertigem do que fomos
Também eu me enredo sempre em ti..algures
Também eu sinto a boca seca...a boca onde se escondem pressentimentos
Entardece...há um sabor a tempestade...estranho-me..esqueço-me
Ainda seguro aquele ramo de lírios bravios...brancos de nada
Agora que tenho a alma carregada de palavras..não te as posso dizer
Eu sabia que um dia acordaria..que as tuas mãos seriam flores...caídas
Molhámos os corpos com saliva ...comovidos
Cantámos em todos os mares..silenciosos mares que nos escutavam
Imobilizadas marés que se afundavam em nós
Caminhámos...devagar..como um esquecimento..
Ou como uma concha tecida com gestos simples
Havia dias indecifráveis..algas..céus em todos os recantos de nós
Afundámo-nos na febre das aves..adormecemos em frente ao silêncio
Fomos o sol e a luz que vigia a noite...dormimos
Sabíamos que nos cobria o tempo das florestas..
Refúgio das borboletas que anunciam dor...ou partida
E eu tinha medo..tinha medo de acreditar nas vozes que me falavam de viagens
Queria tirar a máscara..arrancar o relógio de sol..imobilizá-lo dentro de um tempo lento
Mas havia um não acreditar que sobejava da noite
Havia um resfolegar de cansaços...uma gritaria maior que nós
Sabíamos que nas nossas pernas vivia o entorpecimento do instante
Havia o grito a rasgar as nossas silhuetas...já distantes
Pensei em chamar-te..ardia-me a garganta...calei-me...