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folhasdeluar

Poesia e outras palavras.

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Poesia e outras palavras.

Hábitos

Movimento de paz que se equilibra na perfeita serenidade da tarde

Asa de astro cintilando na espessura do olhar

Desafio de seiva que insiste em ser rio

Estaremos aqui nessa noite em que as estrelas se suicidam

Aceitaremos o deslumbramento da escuridão

Real pluviosidade de relógio sem tempo

Hábito e fé...criança de intocável sopro

Hoje...

Tal como sempre... viverás na imaginação dos desertos.

 

 

A poetisa do amor

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 Por detrás do médico que dá a conferência de imprensa sobre a operação ao  Presidente Marcelo no Curry Cabral, está um painel dedicado à poetisa Sára Serzedelo (assim mesmo com acento no "a"), que morreu muito jovem. Desta grande poetisa apenas foi publicado um livro- O canto do Cisne - ( póstumo) em 1926, eu tenho a sorte de ter um exemplar desse livro que me foi oferecido pela minha tinha Eduarda.É um exemplar já com algum desgaste, mas contendo magníficos poemas, aqui reproduzo um    deles e também a capa do livro.

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 Nota -  este poema será transcrito respeitando a ortografia de então

Flôr do génio

Deus, ao criar o mundo, em seu poder infindo

Deu vida a uma flor, a que chamou Talento

E a tenra flôr cresceu em campo vasto e lindo,

Beijada pelo sol, batida pelo vento.

 

Por todos cubiçada, ao Poéta ela foi dar

A vibração sutil do seu fulgor radiante;

Surgiu após a Glória, e veio aureolar

A sua fronte bela em nimbo deslumbrante...

 

Ó Poéta imortal, eterno Trovador,

A quem - astro gentil - beijou a Inspiração

Como tu, bem quisera, acalentando a Dôr,

Levar o doce alívio a todo o coração...

 

Mas na minha humildade apenas sei chorar

E, se nos versos meus pus toda a minha vida,

Não lhes dei o calor que vai reanimar

Do ente amargurado a alma entristecida...

Bom 2018 a todos...

 

 

 

A indiferença dos novos para com os velhos

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 (Goya - dois velhos a comer sopa)

 

Era velho e encontrava-se reduzido ao silêncio, não porque não gostasse de falar, mas porque ninguém o escutava. As suas palavras já nada significavam para as pessoas que com ele conviviam. Para os outros era uma figura inútil, sem importância, um ser cujo desaparecimento seria apenas o ponto final numa vida há muito destituída de sentido. Um processo de lento desaparecimento que tinha começado quando a sua voz começara a tremer. Por vezes esforçava-se para se fazer ouvir,na esperança de que alguém se interessasse pela sua conversa,mas era como se fosse um ébrio ou um louco a falar, era como se fosse uma pessoa que delira e o que diz não interessa aos outros. Era um velho,um pária na sua própria casa,era uma hemorragia de silêncio que deslizava em direcção à morte.

Os meus votos para 2018 são para que haja mais respeito pelos mais velhos...

 

 

 

A outra dimensão da realidade

J. Agee, uma noite é convidado por um homem a abrigar-se de uma tempestade numa quinta de uma família pobre do Alabama. Entra numa sala escura, mal iluminada por um candeeiro de petróleo. O homem e a mulher sentam-se junto da chaminé, as crianças estão no chão ou em cima da cama.A filha mais velha do casal, Louise, tem ao colo o mais novo, um bebé.O pai não faz qualquer apresentação, nem qualquer conversa é obrigatória.O tempo passa enquanto a chuva cai.Agee deixa-se embalar pelo silêncio e por uma solenidade tranquila, a que não está habituado.De tempos a tempos uma palavra anódina rompe a espessura do silêncio, sem encontrar eco.De repente, Agee e Louise trocam um olhar e a cumplicidade nasce de imediato. O escritor toma a consciência de que a adolescente não tirou os olhos dele, desde a sua chegada, e fica incomodado com o facto.Os olhares prendem-se discretamente entre si.Para dissipar o mal estar Agee sorri.O olhar de Agee expressa tudo o que sentia por ela, tudo o que lhe poderia dizer, durante horas, se as palavras pudessem dizer tudo, e tudo isso se reunia no seu olhar, e voltava cabeça e lançava os olhos sobre os olhos dela e ficaram ali sentados com uma vibração crescente entre os dois que o deixava meio inconsciente. A chuva abranda,Agee levanta-se, não foi trocada qualquer frase. Houve um reconhecimento mútuo, preso a um momento precioso,numa outra dimensão da realidade.Conto extraído do livro de David Le Breton - Do Silêncio.

Ave de sonho

As aves mitigavam a nossa solidão...voavam dentro do nosso olhar

Como camafeus que sorviam o crepúsculo improvisado da chuva

Ás vezes nascia em nós uma fala de jardins..um flutuar de paixões...um infindável mundo

Como se a existência fosse um sonho sem realidade...

Uma metafísica de relógios sem horas..parados no sono ácido das flores

As aves rasgaram o mítico dia...numa improvisada fulguração de lume e deserto

Como se o sangue jorrasse em catedrais de galácticas manhãs

Carne de areia...pedra de chuva...esboço de compasso improvisado

No percurso dos céus vive a avidez nómada das cidades

Vive a flutuação despropositada do sono...vive o murchar interminável dos corpos

Vive a paixão ignorada dos dias...

Como o cio vulnerável dos espaços onde o tempo se gasta

E o futuro não passa de uma insuportável demora.

 

 

A.Camus e a perfeição tranquila do silêncio (conto)

"Anteriormente, a pobreza junto da mãe tinha doçura. Quando se reuniam à noite e comiam em silêncio, à volta do candeeiro de petróleo,havia uma felicidade secreta nessa simplicidade e nesse recolhimento.O bairro à volta deles estava silencioso.Mersault olhava a boca descontraída da sua mãe e sorria.Ela sorria também.Mas ele também sabia que não era grande coisa amar alguém,ou que um amor nunca é tão forte que consiga encontrar a sua própria expressão.Por isso, a sua mãe e ele haveriam sempre de se amar em silêncio.E ela haveria de morrer - ou ele - sem que,durante toda a vida, eles tivessem podido ir mais longe no falar da sua ternura".

O tagarela

Aquele que fala muito não deixa espaço ao outro. Utiliza a comunicação sem conteúdo,anula simbólicamente o seu parceiro de conversa, que para ele não passa de um ouvido onde as suas palavras façam eco, no fundo, o tagarela só se escuta a si próprio.

Na pele do vento

 

Há na pele do vento um nada onde nasce cada instante

supremo fruto de árvore seca

veia cosida ao breve sopro da morte

poço que atrai a promessa excessiva das palavras.

 

Talvez seja preciso que a pele regurgite os seus demónios

que outra luz desça sobre o coral de corpos abstratos

que o mar se incline sobre a pacífica rosa

e outro espelho reze ao código brutal do esquecimento.

 

 

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