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folhasdeluar

Poesia e outras palavras.

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Poesia e outras palavras.

Num pedaço dos teus olhos

 

O mar não quer saber de ressacas nem de mensagens

O mar tem a nudez de um corpo incapaz de ser vestido

Tem os dias dentro de si... tem o sol dentro de si...o mar acumula todos as traços do teu rosto

Num pedaço dos teus olhos cabe um mar inteiro

Na tua pele erguida vive a transpiração de uma melodia

Na minha mágoa há um altar de incenso

E quando neva... do chão erguem-se pedaços de teclas desafinadas

Teclas de vida atirada ao lixo das ruas

Onde os silêncios se colam aos corpos

E as bocas se colam à solidão das casas...

 

É hoje

É hoje que vou colher todo o mar que entra por mim adentro

É hoje que me vou fechar nesta garrafa de memórias e partir por ti acima

Sei que tens dentro de ti toda a eternidade da pedra e que a chuva é apenas a separação do sol

Mas hoje vou beber a luz que acaba em ti... porque sempre haverá luz enquanto aqui estiveres

Amanhã talvez mastigue o sono que me consome... talvez triture o começo do mundo

E ria com a língua da serpente que encantou as silvas do paraíso

Amanhã talvez cuspa fogo..talvez construa uma carapaça com os beijos que me darás...

Espero eu.

 

Dizia que o tempo só caminhava por dentro dos relógios

 

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 Conversava sobre todas as coisas conversáveis. Falava da irrealidade como se estivesse a empurrar para fora de si a impossibilidades das palavras dizerem o que sentia. Marcava a acentuação das frases com um olhar agudo...atónito...um olhar que falava das coisas que podem não acontecer, como se fosse um oceano a afogar-se a si próprio. Na certeza das mãos os gestos ocupavam todos os lugares disponíveis, eram mãos de tudo e de nada. Mão de fascínio a explanar teorias apocalípticas. Dizia que o tempo só caminhava por dentro dos relógios, que por fora tudo estava parado. Tudo era para ele uma imensa massa de raciocínios desconcertantes. Falava das orelhas do tempo, de como o tempo escuta as pessoas e depois desaparecia por dentro da miragem dos dedos, dizia que era mais um escorrer pelos dedos das pessoas e que os deuses moravam nas gotas de chuva. Gostava de se sentar junto ao rio a imaginar a distância de ali ao nada. Inventava rotas de luz que só paravam dentro dos olhos das crianças e que talvez fosse por causa delas que deus construiu o vento...para lhes afagar os cabelos de seda. E as árvores? Quando falava nas árvores era com se vestisse as folhas outonais,era como se construísse em si o tecto abaulado das emoções que sobravam das gotas do orvalho. Era um sábio que misturava o tempo com a carne e fazia de si um sonho a deslizar pela tela abstrata dos dias. Sonho e luz. Tela e paixão. Côr. Mas não lhe chegava, um dia achou que tinha um caminho dentro dele. Achou que dentro da sua ânsia havia um trópico de paixão intensa e que a sua obra-prima seria deixar um rasto de esquecimento gravado na pele das pedras. Por vezes gostava de lhe perguntar o que é que ele pensava da espuma, o mais certo seria dizer-me que a espuma é o pensamento do mar e que as algas são neurónios à deriva. Mas e nós? - perguntei – nós somos a tela de deus - disse. Ele fica sentado a observar a sua obra, enquanto a gente se desfaz em bichos. Repara, os cais são acenos de países distantes, os países distantes são desejos de púrpura pintado no colo dos homens e a poesia são palavras que tombam pela cara dos poetas e caem nos intervalos das paixões. Sabes que quando as pessoas se apaixonam é como se remassem pela candura perigosa dos rápidos é como se lessem um livro sem letras, feito só com pensamentos? Há uma harmonia em todas as coisas erradas, como se as coisas erradas servissem para nos mostrar que as coisas certas são desnecessárias. Para que servem as coisas certas, as palavras certas, os gestos certos? É muito mais interessante a palavra errada ou o gesto errado. Há muito mais utilidade num grão de areia que na soma de todos os espaços vazios. De resto não me lembro de mais nada, a não ser de um espaço que embora inútil,ainda me serve de respiradouro. Um espaço onde me penduro sobre o Ganges, como uma grinalda de cores a agitar o vento, enquanto como um sonho e poiso o olhar no infinito.

 

Anoitecer

 

Para onde vais vaga que o vento afaga?

Para onde escorre essa geometria de cinza alado?

Bocal de perfume esfacelado a invocar a passagem dos dias

Função de planta transparente a gravar-se nas arestas dos olhos

Mar a invocar céus... perante a enormidade de ter que respirar sonhos

 

No meu interior cresce o asfalto ferido das cidades

Na minha alma desenham-se traços de régua e esquadro

Enquanto o cio do vento lambe os pedaços que caem dos meus passos

 

No anoitecer que respira na clausura da aurora

Os corpos ardem como espelhos fascinados

As estradas são o íman que atrai a perdição das luzes

O sonho é o incómodo de si próprio...um mar de violetas a engolir jardins

Uma passagem que transpira no fundo da dor

Tão forte...como uma porta de luz entreaberta para o desencanto da neblina

 

Todos os corredores que percorri me levaram ao desencontro das memórias

Todos os perfumes são difusas estrelas a desafiar a lentidão das noites

Onde cresce uma tosse amarga... que fala de vinho e ausência

Que engole a luz das cidades...com uma raiva cíclica

Como se fosse um cometa de âmbar a desafiar a perenidade da alma.

 

 

E depois do sono final?

Já todos ouvimos falar de pessoas que morrem e depois se vêem a si próprias deitadas em camas ou em macas. Quem passou por esta experiência fala de um bem-estar maravilhoso. É sobre esta sensação de maravilha que Plotino,filósofo grego, que quando acordava imerso numa beleza majestosa, dizia: "Pergunto-me como foi possível,e mais uma vez, descer desta maneira, como é que a minha alma pôde vir para o interior de um corpo, se já, quando está num corpo, me apareceu desta forma, ou seja, já lhe apareceu em forma de alma." Plotino acreditava no Divino e para ele o Divino era a alma solta, e isso era a suprema fonte da sua felicidade. Não sei se é verdade que Plotino acordasse com a alma fora do corpo, mas ele afirmava isso, como se tivesse vindo de uma transcendentalidade espiritual e era ali, dentro daquele supremo bem-estar que ele desejava ficar.

A verdade é que todos temos a tendência para acreditar numa alma que se liberta do corpo, mas para bem de todos nós não conseguimos assegurar que existe.

Todos os dias...

 

Todos os dias... aos bocadinhos... vamos construindo um passado

Todos os dias... aos bocadinhos... fazemos de nós amuletos do espaço

 

Esquecidos dias... rutilantes ais... já nada nos une ao colo dos pais

 

De vez em quando subimos ao palco

Rasgamos a carne... num bolear de vento

De vez em quando arrancamos pássaros

Bem cá de dentro

De vez em quando flutuamos na palidez

De um passado sem tempo

E é grande a escassez

Da frescura da tarde

Que nos encerra o lamento

 

Cheiramos flores... na franja das ruas

Bebemos o mundo em catedrais semi-nuas

 

A dor é a marca...que marca o tempo

A felicidade é o vento

O vento que desmarca a marca do tempo

O tempo que marca a felicidade do vento

 

Gaivota de seda que no espaço flutua

Inverno na praia... gesto de rua

Como será o país onde a água transborda

A asa se quebra... o sal rói... e o rosto discorda

 

Piso o chão que os meus pés não sentem

Piso agora os meus pés dormentes

Piso as horas e as estrela cadentes...

 

 

 

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