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folhasdeluar

folhasdeluar

Abandonos...

Lembraremos sempre o começo obsessivo da floração das amendoeiras

Lembraremos sempre as abelhas empoleiradas nas flores côr-de-rosa

Teremos sempre o riso feliz de uma idade inapagada...

Seremos sempre essa idade sem fim...esse selo de mel e galho quebrado

Um dia hei-de trazer-te o sossego mais profundo...o mais insensato

Encontrarás então a marca de um rosto assomando por detrás das pedras

Poderemos então falar dos sentimentos que se imobilizaram em nós

Das coisas que despontaram nas flores dos narcisos

Das palavras que encontrámos nos caminhos pedregosos...

Tiraremos a humidade viscosa das horas que estalam no peito

Como uma afronta...ou como uma tela pintada por pássaros loucos

Que se perderam nas sílabas assustadas dos sonhos...

Vagabundos de contos de fadas...profundos...quebrados...

Abandonados...

 

E tanto mar

 

Uma flauta...um pequeno sonho a jorrar verdades

Jethro Tull... songs from the wood

As notas ondulam...e eu já me perdi na espessura íntima da vida

Mesmo que alguém me chamasse...eu diria que me esqueci de acordar

Fechei as persianas...e o fumo do que sou sufoca-me

Quem sabe que pés tem a solidão que se levanta em silêncio...

Quando a ponta dos nossos dedos se consome nas ruas húmidas de saudades...

 

Somos símbolos estagnados de quê?

Pomos nomes às coisas...só para chamarmos as coisas por nomes

Afinal...Deus não tem nome ...não precisamos de o chamar...

 

Um dia acordamos e somos pássaros perdidos em gaiolas de pedra

E tanto mar...e tanto mistério...e nós já sem querer saber...

 

 

 

 

Incêndio...

 

Meu pequeno dedo que apontas para uma terra onde nenhum coração te toca

Indicas o caminho onde nenhuma boca bebe

Que terra é essa onde os caminhos vão dar a ti

E tu... finges pairar num sonho sem limites...

Inventaste um jogo de sombras...tornaste-te uma folha vogando na limpidez das fontes

Resta-te o outono..e o vazio das águas...

 

A chuva enche o teu vazio...completa-te

Em toda a parte irrompem os teus delírios...gritos de fogo...cheios de lava negra

Como alegrias entornadas na valeta sólida das madrugadas...

 

Quero que me digas em que ser te transformaste

Que peixe vermelho mora dentro de ti

E me leves...a ver o lugar onde a espuma amansa os dias

 

E se um barco de ferro maciço esperar por mim

Se os meus joelhos dobrarem em sinal de paz

Asseguro-te que serei a poalha de neve que te aquecerá...

E de ti farei o meu mastro..sem fim...

 

É por isso que eu me levanto

É por todo o impossível que eu anseio

É por isso..que no inverno...

Me incendeio...

 

 

 

 

 

Sozinho...

 

Não importa quem faltou naquele dia

Estavam lá os que sabiam o meu nome

Estavam lá aqueles que nunca me faltam

Estavam lá os que crescem na minha vida como que passa a rasurar os dias

Os que conhecem os sabor das fogueiras na praia

E que regressam...sempre que as castanhas despontam nos ouriços...

 

Encostado a estes cedros meço o meu tamanho

Tenho a altíssima aura destes cedros que plantei..cresci com eles...podeios

E mesmo quando a névoa desponta nos seus galhos...e o frio se desprende das manhãs

Eu vejo toda a altura do meu sonho...

 

Se eu consentisse eu saber quem fui no meu passado

Se eu quisesse saber que marés a minha vida vazou

Encontraria uma medida para mim...saberia a que sítio regressar

Como uma criança a quem trocaram as voltas na noite

Mas acabou por encontrar a falésia branca de onde não caiu...

 

Na transparência de mim...seguro o queixo...prego os olhos na face de alguém que passa

Não falo...esqueci a mornura das palavras

Volto sempre a este lugar...mais feito de gestos do que se respirações

Habito as amarras sólidas do poente...sozinho...

 

Ignoro todas as coisas...

 

Por entre a extensão luminosa da manhã

Desci a rua como quem persegue um destino

Procurei  por entre a sombra plumosa das árvores-do-algodão

A extensão cinzenta de mim próprio

Confundi-me com as folhas e com as flores que ressaltam nas janelas

Atirei longe o meu olhar como quem procura a esperança...num ponto qualquer do céu

Caminhei pelo sol... toquei na rudeza das casas ...perdi a idade

Sou agora o cume de qualquer coisa...o pérfido...o que bebe os sons das aves

Arrepio-me...alucino...hoje é tudo diferente dos outros dias

Há feras à solta...há castigos invernais...qual será o que me espera?

 

Quem se sujeita a andar na rua...

Sabe que por entre o azul das sombras se passeiam laços de amizade

E que a irrealidade espreita pelo canto dos rouxinóis.

 

Por entre a beleza dos dias...o corpo senta-se nos ressaltos das portas

As rugas crescem....os frios virão...

É o início dos silêncios... a aportar ao cruel desfilar do destino

Prometi que um dia correria pelo perfume das ramadas

Que um dia faria companhia a qualquer ave solitária

Tão certo como saber que um dia a geada me cobrirá o sono

E as avencas perdoarão a minha falta de atenção

No fundo...ignoro todas as coisas...

Mas perdoo-me...

 

 

É tarde..

É tarde..o silêncio cresce...a boca devora a ignorância do vento

Hoje não quero ver o sol...hoje quero ser o sol

Lamento...mas não posso iluminar o abandono dos outros

Hoje apenas posso ser a cadeia que aprisiona as coisas sem valor

Ignoro quem passa...falta-me a paciência para ser pessoa

Pressinto que há uma alma em cada árvore

Um morto em cada estalada do vento

Um corpo quebradiço...estalactitizado...como se fosse o começo brando dos jardins

Um corpo feito pedra...cheirando ao húmus dos pinheirais

Que ressalta de censura em censura...até chegar à frescura do ocaso

Onde me espera a derradeira pluma do sol...

 

 

Fantasmas...

 

Há uma aldeia fantasma em cada um

Uma casa desabitada onde procuramos colocar a tela que pintamos

Sim...e há uma escrivaninha que nos obriga a escrever...

A descrever ...a ausência de um lugar onde possamos voar

Mas que lugar é esse? Que flores espreitam pela borda desse vaso?

Vivemos numa curva que não podemos contornar

Procuramos a entrada para os dias mais longos...queremos esses dias

Vestimos roupas que nos espelham...somos roupas...coloridas ou talvez negras

Divagamos pelas ruas pedregosas dessa aldeia...

Ruas ladeadas por canteiros de hortências azuis encostadas a casas em ruínas

Que miram os cumes anilados das montanhas mais distantes

E o verde matizado das florestas de carvalhos

Sim...vemos tudo isso...vemos o vento solitário a empurrar as folhas caducas

Vemos o riacho que desliza pelas encostas da serra

Sim...vemos tudo isso...mas não nos vemos a nós...

Porque já partimos...

 

 

Lentamente ...

 

De repente veio aquela força

Lentamente ...plantou-se em mim como se habitasse um pedestal

Pétalas de sonho despontavam na minha mão

Eu...tremia como quando a terra se assusta

E explodi..como se crescesse por dentro de uma trovoada

O choro das ruas chegou à minha mão...ergui-a...

Tracei um risco no lusco-fusco da tarde que oscilava na minha alma

E saí...descalço...como quem não sabe para onde vai

Mas sabe...que vai encontrar um caminho.

 

Desde sempre...

 

Já não me serve aquela chama que ressaltava em cada sonho

Impercetivelmente...foram-me caindo as folhas da surpresa...

Como se eu viesse de uma lonjura desconhecida

Os dias tornaram-se numa extensão de mim

Quebrei-me como se mergulhasse num ninho desfeito

O mundo era desenhado a carvão...arrepiante...

Confundindo-se com as plumas esparsas da noite

Até que um dia...chegaram as flores...e os corvos acordaram-me da letargia

E eu recebi nos olhos...em cheio...a maior luz que conheci...

Então...resguardei-me no voo das andorinhas

Construí a casa...plantei orvalhos em cada teia de aranha

E abracei a terra...como se a habitasse

Desde sempre...