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folhasdeluar

Uma coisa é uma explicabilidade inexplicável...Hugo von Hofmannsthal

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Uma coisa é uma explicabilidade inexplicável...Hugo von Hofmannsthal

Rente ao mar

Um secreto perfume percorria o inverno

Musgos cresciam na despovoada tarde

As chaminés definhavam numa névoa de fumo

Tudo fazia lembrar o frio secreto das janelas

Onde brancas nuvens se espelhavam

Como retratos de pálida paz.

 

Rente ao mar...com olhos de renascer

Fecho-me num sol...agarro crinas das algas

E lá sigo...rasteiro...como a luz do farol sobre as águas.

 

O exílio das palavras cresce nas areias

Busco esse tempo que cai a pique sobre o frio

Em cada recomeço uma carnívora sensação

De estar a fabricar um mundo impossível.

 

Falo de um tempo feito em ilimitado firmamento

Falo de um mapa sonolento

E de um clamor de insónia...a percorrer o nebuloso silêncio

Do suão que passa em magníficos luares

Do pasmo das abóbadas de sombra

Da carnificina dos corais

Que paira no desânimo da noite.

 

 

 

Espiral

Vacilam no meu corpo os pensamentos

A sordidez das ruas arde-me na alma

Antes que o meu olhar se erga...já eu levei o estalo do céu

As minhas pálpebras estendem-se pelos murmúrios do vento

Que passa...rasante...pela minha imensa noite.

 

Pousei ...o olhar como um grito esquecido na secura dos caminhos

Vi...a altivez nefasta dos ciprestes

Corri...a entregar o corpo todo ao silêncio.

 

Esqueci a mordedura farisaica do frio

Acreditei que vinha aí o verão

Sacudi do corpo a inocência

As minha manhãs ficaram sem idade

Fechei-me numa redoma de mapas sem destino

Como uma casca de vidro percorri os riachos

E descobri um límpido sonho de morte

Na vetusta química dos corpos.

 

Que se passa contigo minha aurora desenfreada?

Meu perfil de espera...minha caminhada

Meu sonho de menino a crescer...

Em espiral ilimitada....

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Devia morrer-se de outra maneira.

"Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer:

«Fulano de tal  comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio.» E então, solenemente, com passos de reter  tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida.

Apertos de mãos quentes.Ternura de calafrio.«Adeus!Adeus!»

E, pouco a pouco,devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes...(primeiro, os olhos...em seguida, os lábios...depois os cabelos....) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo...tão leve...tão subtil...tão pólen...como aquela nuvem além(vêem?) - nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis..."

Texto de José Gomes Ferreira, extraído do livro Poeta Militante, e dedicado à morte de Manuela Porto.

Tempo caído...

Enquanto me perco nas costuras das ruas

Aproveito o largo céu para sorrir...

 

Avanço sobre o promontório onde a luz se despede

Deixo a minha sombra nos rochedos

Bebo o sangue das falésias

E abro o peito sobre a noite que cresce no mar.

 

Antes que o tempo caia na obscuridade da lua

Antes mesmo que o vento me povoe a alma

Construirei um destino com os olhos que caem no fogo das emoções

E depois...terei um pensamento limpo

Povoado por céus que espiam a minha escuridão...

 

 

Êxtase

Todos os vivos seguem esconjurando o bolor dos cadáveres

Em fila...sorridentes...perguntam pelos dias dos outros

Amam a ilusão com uma ternura de xisto

Perseguem a escuridão com dedos de druidas alucinados

Para no fim perceberem...

Que até as flores apodrecem...

 

Indiferente à sujidade viscosa das línguas

Banho-me em chuvas que se parecem com afagos

Chapinho no silêncio...e seduzo os espelhos que encontro na rua.

 

Entrei...e multipliquei-me nas rugas da noite

Não precisei de alisar o mar nem de me mostrar na orla da praia

Eu...era apenas um cego num corpo de bosque

Tacteando o êxtase imaginário das algas...

 

Sejamos memória...

Por vezes quero ouvir-me a estoirar como um desabafo de um cometa

Outras vezes quero ser a fúria do mundo e decepar os ventos...

Com a imaginação de uma criança...

 

Um dia explodi...não sei o que disse

Não sei se ofendi...

Mas senti a clareza de ser eu...

 

Passam por mim aves soluçantes

Sonhei que existia antes de alguém perguntar quem sou

E continuarei a existir mesmo que não perguntem quem era.

 

Sejamos memória...

Lavemos as mãos no lajedo da carne

Do nada se esculpe uma vida

Do nada se fazem as tardes

Quando descem sobre as estradas de silêncios poeirentos.

 

Abstracções

Atravesso a nado a dureza do rio

O sol pesa-me como quando não consigo dizer o que sinto

Só me falta transpor o muro e escrever qualquer que não diga quem sou.

 

Recordo-me do voo ilíquido das aves

Levanto os olhos como quem não é nada

Só me falta vestir-me de naufrago e abrir caminho como um homem teimoso.

 

Pergunto por mim ao lodo onde se afundam os meus sentidos

Agarro-me à boia insuflável da abstracção

Só me falta a imolação do meu corpo abstracto

 

Nem sempre sou uma palavra

Às vezes sou um descampado

Um tatuador de dias

E...um denso caminho.