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folhasdeluar

Poesia e outras palavras.

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Poesia e outras palavras.

Perder a fé

Perder a fé. Rasgá-la em pequenos sentidos da existência. Dispensar a imortalidade. Calar a metafísica. Falar apenas com gestos de silêncio. É preciso sorrir. Perceber a mística gasosa do dia. Amassá-lo numa masseira de calmos exercícios budistas. Diz-me o instinto que a luz se reflete no tempo. Que o tempo é uma forma de sentir a insistente revolta do corpo. Anseio por uma luz asséptica. Limpa de fés e de filosofias. Uma luz descuidada. Fechada num corropio de sentimentos. Maravilhada. Às vezes vejo o meu corpo encostado a uma vida. Outras a um escombro. Outras ainda a equilibrar-se numa remota tese arruinada de mim próprio.

 

Seja como for. Quero incomodar as pessoas. Beijar o asfalto. Realizar tudo o que seja proibido. Agitar..agitar...agitar...esse xarope de vida débil e tediosa. Ter ideias. Confessar os meus pecados aos cães. Já me passou pela cabeça vestir um fato feito com flores. Sair para a rua. E lentamente...despir-me. Oferecer o meu fato aos passantes. Flor a flor...despir-me das flores. Despedir-me das flores. Com gestos de quem não está ali. Era uma forma original de dizer que a vida vale a pena.

 

E a existência? Essa linguagem de xadrez anestesiado. Essa fantochada. Esse recôndito catálogo dos dias. Olhamos a rua e vemos a ausência de alguém. E sabemos que há coisas que são de todos. A noite, por exemplo,ou o assobio do vento. E tudo a escapar-se pelas rugas de um poema.

 

 

Permitam que me retrate

Permitam que me retrate. Sou a alça que se prende à exatidão de um labirinto. Comecei como uma onda que se perdia na rudeza de uma falésia. A minha dor acumulou-se em camadas de fantásticos delírios. Perdi-me como quem dança um tango. Bebi como quem encontra um amigo. Não sei bem porquê...mas todos os dias nascia um paraíso no meu bolso traseiro. Bastava-me alcançá-lo com a minha incoerência de corpo desabitado. Vi realizar os mais doces sonhos. Acabei sonhando que sonhava com a alquimia de um sistema planetário sem dor nem mácula. Era uma forma diferente de dizer que dormia dentro do sonho. Quando olho para alguém...sinto que ali vive um caleidoscópio de cores berrantes. Algo assim a atirar para um paradoxo complexo como um quadro de Vieira da Silva. Às vezes, no fim do dia, deito-me de costas sobre a cama e distraio-me com o esvoaçar de alguma mosca que me espicaça a imaginação. Esta mosca não pensa em aventuras e muito menos em literatura. E eu também não!

 

Tenho uma vida policromática. Algo assim a atirar para a ausência de senso. Não me preocupo com presunções nem com a sobranceria do futuro. Os outros vivem. Eu, perspectivo assimilar a roda do tempo. Ser um rio ou um caudal de estrelas maciças. É também uma forma de apoiar a alma na desordem do universo. E depois...realizar o meu grande sonho... ser um cometa cristalizado numa anémona.

É hora de salvar a alma

Utópicos hinos assombram o lado interminável da tarde. Uma chama acende-se. Um perfume ergue-se. As sombras mudam de cor. Há dias em que as folhas das árvores se deitam lentamente. E os pássaros beijam as algas com suspiros de seda. Arrancamos as folhas do diário como quem tece fios de linho. O mel desce pelos lábios. Entorna-se pelas coxas. Os dias são topázios. As noites são grossas lágrimas. Uma folha desaparece na perversidade do fogo. Extinguem-se palavras. A pele enruga-se. Em redor dos olhos crescem dolorosos veios de silêncio. Um raio de sol é um luxo fácil. Sabemos que os genes do mar crescem nos abismos. Que os genes do homem são abismos. Que os abismos são mares e genes e homens.

 

Se cheiras a ti. É porque de ti se desprende um cheiro. Os dias começam como um girar de luz. Se tremes é porque vives. Se nada acontece é porque morres. Mas é mesmo necessário que cresça um sonho num riacho? E que do sonho salte um sapo de pedra? Assustas-te com os simulacros de sorrisos. Esse sacrários feitos com a parte inadmissível das pessoas.

 

Obstina-te. Cerra os lábios. Sente todos os prazeres. Desemboca na laje de um adro deserto. Preenche-o com a tua furtiva sombra. Na distância de cada sonho desaparece a solidão. Em cada solidão aparece um sonho. Em cada pesadelo uma fé. Em cada fé um pesadelo. É impossível ser um barco. É impossível naufragar. É hora de salvar a alma. Tomar um duche. Dormir.

Uma alameda de insónias

Iconoclastas de espelhos. Fazedores de incoerências. Personagens do nada. Os outros são como que uma passagem para a indefinição. Uma ponte imprecisa e impressiva onde nos inventamos. Representamos para as fotos com rostos de poemas. Irreais. Vivemos dentro de uma imaginação excêntrica. Complexa. Uma forma de grito anestesiado. Não nos interessa a vida dos outros. Não queremos saber se as cidades são reais. Passamos de ontem para hoje como quem almeja um destino. No final da memória uma porta abre-se para um cinema exausto. O que aconteceu à filigrana da imaginação? Não sabemos! A vida aprecia-se com o seu intenso sabor a morte. A nossa perspectiva é arrumar o cosmos na bagageira da alma. Criar uma alameda de insónias. Descrever a ausência de uma linha de conduta. Cristalizar num sonho formado por castelos de coisas inúteis. Arranhar a terra com unhas espiraladas. Não existir. Ser o tema de uma discussão entranhada na pele da terra. Ser telhado e tecto. Ser objecto e abjecto.

 

É preciso ter coragem

É preciso ter coragem. Quebrar o vidro. Partir o espelho. Desabotoar a máscara. É precioso esquecer a etimologia da vida e a epistemologia do deserto. Ser. Abrir o ar. Jogar. Vogar em todas as direcções. É preciso ter coragem. Rapar a cabeça de dialéticas inúteis. Fazer a festa. Ter sempre na boca o endiabrado vocábulo da liberdade.

 

Saber a pergunta. Ignorar a resposta. Viver. Trepar. Acreditar que a morte é uma rua a deitar para o infinito. Uma ave. Uma casa. Um rio onde todos e ninguém se afoga. Confessar o logro. Submeter a arte. Acreditar em todas as objecções em todas as fusões e em todos os martírios. Brincar. Habitar uma região plantada de borboletas. Pintar a cara de vermelho. Transportar uma caveira no ombro. Esquecer as regras. Achar que toda a Humanidade é um caos desabitado. Uma esquiva contemplação de um Deus indefinido. Sem obra nem moralidade.

 

Pergunto-me...haverá uma região onde os jardins surjam do nada? Haverá algum propósito na flor que desespera pela polinização da abelha? Haverá uma mistura de corpo e alma?

 

Um piano é toda a humanidade. É um perfume. Hipnótico. Uma viagem de vaivém. Uma chama. Uma utopia de alga sinistra. Uma sombra. Um silêncio. Uma Fénix.

Não há desvios para a Vida.

Caminhamos pela nortada de março. Desabitados do mundo observamos condignamente o círculo férreo da vida. Sabendo que somos parte de um filme que acabou com o nosso nascimento. Um grito afunda-se no caos do cosmos. Uma greta abre-se em cada faísca. O trovão é apenas mais um susto. Das árvores escorrem nuvens negras. Acabamos fechados numa vaga sensação de final de tempo...gelado. Olhamos a nossa outra margem. Entramos em todas as perguntas que fazemos. Somos a suprema verdade do nosso desencontro com todas as certezas. Somos mesmo constituídos por todas as incertezas. E, como sempre, somos os pintainhos seguindo a mãe vida. Galinha de ciclos muitíssimos apertados que nos conduz ao fundo do barranco mais solarengo. O barranco onde a magia petrificou a alma.

 

Fazemos desvios. Encontramos caminhos. Amar é muito mais que soprar amor num pescoço desnudado. Talvez eu colha uma flor e faça com ela um filme de cenas ignóbeis. Ou conte uma história onde dou saltos de gato sobre todos os telhados da vida. As pessoas fazem perguntas. As pessoas debruçam-se sobre o que não sabem. As pessoas vivem....como salamandras assustadas.

Reluz um sentimento na estante mais alta dos olhos. O fracasso persegue o espantoso espelho da verdade.

Não há desvios para a Vida.

 

O que trago em mim

Não trago mais em mim...do que uns olhos e umas pedras

Não trago mais em mim...do que um fogo e uma ternura.

 

Agarro o mundo com os meus dedos cósmicos

Desembaraço-me das estrelas e planto aves negras em cada beiral

E não digam que não veem... as sombras do meu pensamento.

 

Por aqui ando a sentir este véu de tempo a consumir-me

Por aqui falo das rosas e dos trevos

E também...do meu desamor pela carne inútil dos dias.

 

Que fazem as nuvens que pairam num céu de corvos?

Que buscam os homens que pairam num tempo gretado?

E as noites...e a seda...e a indiferença...

Que diferença fazem na vida de cada um?

 

Perdeste as chaves...

Já não podes abrir a fotografia da tua infância...

Desconheço a essência das ideias

Desconheço a essência das ideias. Desconheço a consciência de um mendigo. Sei que há um horizonte em cada mundo. Sei que há um homem em cada horizonte. E um arame farpado a cravar-se na carne de encoberta do desejo.

 

Sim! As borboletas têm uma existência que ignoram. Sim! Os sorrisos ignoram a existência das borboletas.

 

Às tantas...o mundo é um pedaço de carvão e tela. Uma abstracção dissimulada de Dali. Um insulto. Uma tese. Uma ponte de Asbru que em vez de unir separa os homens... dos deuses.

 

Quando tenho vontade de rir compreendo a utilidade do riso. Quando tenho vontade de rir compreendo a inutilidade do riso. E o choro? E as lágrimas do riso? E a linha que separa o escândalo de um santo? Onde fica essa linha imaginária que nos corta a existência? Talvez se eu sangrar...o sal do mar se torne mais fino. Talvez se eu sangrar descubra a tese grátis da paz. E se eu me confundir com um rio...é porque sou mesmo um rio. De certeza que não sou só um caminho. Serei também a espera de uma uma inconsciência impassível. Serei...apenas o ar!

As casas...

A noite. O cosmos. Ballet de gestos perdidos. Abat-jour de estrelas gasosas a impregnar os olhos com a beleza de uma outra noite...esquecida.

 

Sonhar...com a vida. Sonhar com esse esplêndido milagre que não alcançamos. Perder as palavras. Compreender o tempo. Alcandorar a alma como se a jogasse ao espelho da paciência.

 

Enquanto a chama bruxuleia... penso na estranheza de um mundo onde a fala afasta as pessoas. Penso nas pedras, nas planícies. Penso em todas as coisas inanimadas e penso também no silêncio de um fragmento de vidro que se banha de sol e pode até incendiar uma vida.

 

É tudo tão estranho e tão simples. O vácuo deforma-nos as vozes. A lonjura deforma-nos os sentimentos. E uma noite...olhos pousados na felpa do céu, ouvindo o sussurro do mundo. Entreabrimos a pele. Filtramos as estrelas. Suspiramos com a opaca maresia. E rasgamos a carne com a certeza de que as medusas nos escutarão.

 

Há um silêncio espasmódico em cada voz. Um segundo que se perde na casca de cada árvore. Um fogo que se apaga em cada gesto de adeus. E uma boca de velho a entoar árias de paciência...perdida.

 

E as casas... onde as vidas se equilibram em tripés de solidão. E as casas... onde as chaves da saudade soçobram ao tempo arenoso da infância. E as casas...essas obras de vidas inválidas a escoar-se por corredores onde ninguém passa. E as casas...onde os sonhos se enterram em litanias de velas...apagadas.

 

Um pouco mais de ti...e florescerás.

Desloco o meu olhar pelas coisas usando passos de centopeia. Não sei o que procuro e muito menos o que procurar. Talvez um sentimento ressequido ou um sulco no espelho. Sou uma personagem abstracta...queimada pela necessidade de descobrir o mundo desabitado das abstracções. Não sei exactamente que cegueira é a minha. Percorro um caminho que é um longo e ineficaz corredor. Abro o correio. Olho a mosca que voa na sala e que freneticamente esbarra na janela. Olho a parede onde uma reprodução de Paula Rego me mostra a mestria e a resiliência das mulheres. Surpreendo-me a pensar em pressentimentos. Muito embora desconheça o que são pressentimentos. Serão as badaladas do meu coração? Ou a sensação de andar às apalpadelas pelas sombras dos sentimentos?

 

Olho para quem não me compreende. Passo por quem não me compreende. Mas também que sei eu dos outros? Que compreensão tenho da sua vida de morcegos sempre à procura dos insectos que lhes infectam a vida? Nada! E é assim que sou feliz. Incapaz de ser outro que é sempre outro e mais outro e ainda mais... nenhum outro.

 

Esquece a imagem. Esquece o momento em que aprendeste a ler. Esquece a comunicação verbal. Esta só serve para atenuar a imagem que não tens de ti.

 

Tudo é breve. Tudo reside na estética do silêncio. A falta de ar é a falta de comunicação. Perder o silêncio é o mesmo que inventar um drama. O teu semelhante é aquele que te cita filosofias tiradas do google? Esquece o teu semelhante!

 

Tu armas a cama onde as almas de novo se comprimem”, escreveu Celan. Não armes a cama. Não comprimas alma. Esborracha os tétricos caminhos da obsessão. Um pouco mais de ti...e florescerás.

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