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folhasdeluar

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Reconstrução

O que é que sabemos? Sabemos levantar a gola do agasalho sempre que o frio nos faz arrepiar. Sabemos que é preciso beber um café e passear pelas conversas que nos rodeiam. Sabemos que um dia chegamos a um lugar que tínhamos esquecido ou que tínhamos guardado na arca da metáfora...como se existíssemos num lugar onde os outros passam sem nos ver. Seremos verdadeiros? Já nem se lembro se sou verdadeiro.

 

Reparo agora nas pequenas coisas. Acordo e oiço um melro. Acordo e apercebo-me que a vida está ali. E que mesmo sem mim continua a ser a vida que adorna os instantes de todos os outros. Sei que é preciso desenrolar o mundo. Sei que é preciso apreciá-lo como quem sopra a cinza que o cobre...ou como um jardim florido de Klee.

 

Movo-me por dentro deste xadrez do tempo. Jogo o jogo do mundo. Herético como uma aranha negra. Sagaz como uma mentira. É por isso que apanhei o hábito de falar na rua...ou mais propriamente de falar com a rua. Não percebo absolutamente nada da perfeição da morte...nem da adrenalina que se espalha pelo meu corpo ao anoitecer. Posso aceitar tudo. Posso não aceitar nada. E de cada vez que olho o céu é para descobrir o que já sei. Que também não é nada.

 

Calcei a alma com a inútil sabedoria do absurdo. De cada vez que me sento um bocado é para inspirar a profundidade da imperfeição. Inspiro-me em Woody Allen como quem quer extrair de si a complexidade do homem ou como quem veste umas calças que há muito deixaram de lhe servir.

 

Esforço-me. Juro que me esforço por me reconstruir. E acabo sempre às escuras...a tactear a metafísica como um barco que adorna. Ou como um cais onde não há espaço para o meu calado ou ainda como uma montra...onde em vez de belas vestes se expõem as minhas melhores lágrimas... junto com o meu desprezo pela vacuidade de quem se preocupa com os números da sorte.

Sobressaltos

Em cada medo há um silêncio gelado. Em cada desmoronar da tarde há uma espécie de sacrifício. É preciso fazer uma pausa. Apanhar os pedaços de chuva que caem no regaço dos olhos. Sei que há uma distracção em cada faísca que assombra a janela. E um orgulho em cada catástrofe que cai sobre o relvado. Somos loucos. Sobretudo... somos pessoas. Somos a medida de um vago grito. Somos a grife do desespero. Uma água que escorre pela sarjeta. Uma maldição. Um vinho que bebemos de uma assentada. Abrimos e fechamos como uma porta ferrugenta. Roncamos nos gonzos. Precisamos do óleo do amor.

 

Atravessamos os parques desertos. Atravessamos as nossas pontes. Atingimos as margens do inimaginável. E há sempre uma rua ou uma flor ou um roer de tempo à espera da nossa nostalgia. Eu sei que há. Eu sinto que há. Sempre que posso despeço-me das perguntas. Digo-lhes que partam. Ofereço-lhes a liberdade de caminhar em direcção a outras perguntas.

 

Sobra-me o tempo. Sobra-me a história de umas rugas de velho a espezinhar a solidão. E se eu te vir...talvez disfarce. Talvez desvie o olhar e desça a rua em direcção ao caos. Ocupo agora o tempo a pintar os fracassos do que não fui. Sou agora um sopro de verdade repetida. Mil vezes. Cem mil vezes. A verdade é que já me esqueci da verdade que devo repetir. Pode pois a verdade esconder-se na estante onde os filósofos dormem? Ou os poetas? Santo Agostinho ou Éluard a dormitarem no seu estendal de sentimentos. Pode pois a verdade encontrar-se na insatisfação de uma flor? Ou na sonolência de um gato preto? Não sei! Sei que sou o passageiro de um momento raro. Aquele momento em que acordo e me debruço sobre tudo o que me sobressalta.

 

Obrigado Madalena

Obrigado Madalena,

por me deixares segurar na tua pequenina mão

enquanto vadiamos pelas ruas

ou quando atravessamos a estrada

e saltitas pelas faixas brancas da passadeira

porque eu te ensinei que é sempre pelo branco.

Obrigado Madalena,

por me deixares entrar no teu mundo

por me mostrares que ainda há remédio para os homens

que apesar de toda a seriedade dos adultos

tens o poder de me fazer retornar

um tempo passado de alegria e fantasia.

Obrigado Madalena

por me deixares brincar contigo no parque,

jogando ao lenço ou a outras brincadeiras que inventamos,

e mesmo quando te pergunto

se queres ir para casa e me dizes que não,

nem imaginas que não estás a ser teimosa,

nem sabes que apenas me estás a proporcionar

mais uns momentos de prazer,

o prazer de te ver a correr e a saltar livremente e com alegria.

Obrigado Madalena,

por me pedires para te empurrar no baloiço: mais força, mais força!

enquanto cantamos os cabelos ao vento e os olhos fechados,

ou quando queres jogar à bola

e a chutas como se ela fosse o mundo.

Obrigado Madalena

por me recordares momentos

em que também eu dei comer aos pombos e aos patos

afaguei burros,vacas e póneis

em que também eu ri inocente como tu.

Obrigado Madalena,

por me deixares mostar-te as aves e os barcos

quando vamos ao rio.

Obrigado Madalena,

por irmos esperar a tia ao comboio

e tu correres para ela a abraçá-la

sendo esse um momento de tanta felicidade

tanto para ela como para mim.

Obrigado Madalena,

por seres teimosa, por quereres seguir o teu caminho,

por teres vontade própria.

é um bom princípio, não queiras seguir o rebanho,

ser diferente é ser grande.

Obrigado Madalena,

por seres o que és.....apenas criança.......

Obrigado Madalena,

pelos momentos de alegria que nos tens oferecido,

de forma gratuita, genuína... e por isso mesmo, tão valiosa.

Obrigado Madalena.

  • Texto escrito em 25/02/2015 aquando dos 4 anos da minha sobrinha Madalena

 

Um passo em frente

Um passo em frente. Um cheiro a noite. Uma revolta. Um soluço. Uma chuva que cai na malga da alma. Desembocar na contramão da alegria. Tudo nos pode acontecer. Até uma porta se pode abrir. E nós sem saber que essa é a nossa porta. É preferível esquecer a monotonia das aves. Tudo nos pode acontecer. Até podemos pegar um sonho pela cauda. Podemos consultar a cartomante. Dizer-lhe todas as verdades que ela nos quer dizer a nós. Falsificar uma dor. Cobrir-se com um gigantesco relâmpago. Assombrar os vizinhos. E de repente...trás pás...revolteamos o raio da vida. Já somos outro. Agora somos selvagens a viver em cidades de betão. Deixámos para trás a doçura da infância. Acontece a todos. A estupidez acontece a todos. Uns porque são estúpidos. Outros porque querem fazer deles estúpidos. Não há nada mais estúpido do que um estúpido a divertir-se. Mas o melhor mesmo é fechar os olhos. Entrar num bar. Encostar a barriga ao balcão. Pedir dois trovões de rajada. E depois...jogar às adivinhas com o sapo de barro.

 

Pegar num livro

Pegar num livro. Abri-lo numa página onde nasce uma manhã de flores. E sentir... a petrificação do inverno no voo das gaivotas. Vou até à linha onde passa o sonho. Passa o Sud-express...assobiando. O nada agita-se nesta sensação de triunfo contido. A vida agita-se nesta sensação de nada incontido. As palavras perfilam-se. Fazem companhia à acidez da tarde. É expressamente proibido calar a chuva. É completamente possível falar com o vento. Viver dentro dos séculos. Também é possível. Abrir o olhar e fazer calar as estátuas. Realizar um passo de  uma dança.. venenosa. Uma dança que separa a vida  de todas as outras coisas. Afoita.

 

Entre ruas e jardins crescem pequenas palavras. É fácil deixar pegadas no pôr-do-sol. Só não há solução para a ambiguidade de um caos insultuoso. Ou para uma tempestade de folhas caducas. De resto...o destino é como a erva. É um sobressalto. Um domingo envolto em nevoeiro. Uma pequena metáfora. Não há palavras que me segurem. Nem fé a horas certas. Há apenas....incertezas e... imaginação.

Breves sentimentos

Ás vezes somos representações de nós. Ás vezes medimos forças com o impossível. Aguentamos temporais. Forjamos forças. Temos a compleição atlética das nossas ruínas. Fazemos planos enquanto os dias se desconjuntam. Calafetamos as memórias. Saímos desfeitos de cada temporal que nos assola. E sabemos que a única coisa que podemos fazer é caminhar. Não ligamos à morte. Somos insensíveis adornos de uma terra fértil. Ás vezes receamos a falta de sentimentos. Outras vezes somos excessivamente sentimentais. Procuramos explicações para o improviso da vida. Um dia discorreremos sobre o que nos conduziu ao cadafalso. E descobriremos...um vago rasgo de esperança a brilhar no nosso poço mais fundo.

 

É mesmo assim. Haveremos de sentir um dia a utilidade dos gestos. Engoliremos os nossos esforços para não nos deixarmos arrastar pela nossa coragem. Sobreviveremos a tudo o que se aproximar de nós. Somos os raros gladiadores que não entendem a arena. Quem nos conduz? Onde estão as nossas certezas? Haverá verdade maior que perceber a inutilidade de uma verdade? Aproximem-se...dizemos. Toquem-nos...dizemos. Mas por favor...não nos apertem a garganta...nem perturbem a nossa timidez de seres erráticos.

 

E se um sentimento nos arrastar para a inexorabilidade da dor...havemos de saltar de contentes. Porque não há queixas que cheguem para todos. Porque não há incêndios que não se apaguem. Porque aprendemos que a nossa alma vive na brevidade do sentir.

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