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folhasdeluar

Poesia e outras palavras.

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Poesia e outras palavras.

Para lá do tempo

Para lá do tempo existe a primavera... as árvores esculpidas... as chamas negras...

Pelas paredes esgueiram-se sombras...desertos floridos...luzes cintilantes... tosses secas

Para lá do tempo circulam as águas cristalinas...as geometrias despidas...

As salas de espera

E lá estão as filosofias gregas... as vastas esculturas decrépitas... as prisões da luz...

Para lá do tempo a pólvora aguarda a sua hora... os mares que entrarão nas casas...

E os recifes que exibem a sua espuma.

Para lá do tempo existem as janelas... os vidros baços... as bocas que se beijam...

Os tectos onde os silêncios se escondem... as decisões abstratas... as rochas eternas..

Para lá do tempo existe o fogo... as facas que cortam os dias de fumo... o ar....

E um dia seremos a energia atómica... a luz dourada... a combustão da dor...

Dentro dos buracos negros vivem os ecos dos dias espatifados... bíblicos rancores....

Como sombras enclausuradas num sol escuro... somos nós!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os rugidos rudimentares do mar...

Ergamo-nos em pontas. Coloquemos as plumas. E sejamos outros que não nós. Sejamos arcaicos. Espreitemos a brevidade de uma utopia. Percorramos as nossas tortuosas insignificâncias. Condenemos a nossa condenação. E fechados na nossa ingenuidade... dancemos. Como pétalas absurdas. Representando uma comédia de solenes sonhos.

 

Imperturbáveis. Faiscantes. Farejamos o bafo da solidão. Tudo nos falta. Nada nos sobra. Valorizamos o que já não é. Pontualíssimos...chegamos ao nosso mistério. Ao nosso desencontro com a literacia do tempo. Friccionamos a pele com desejos. Agarramos a verticalidade das árvores...apenas para as derrubar. Como quem já não tem convicções. Como quem fulmina silêncios. E dorme em descampados. E vemos em cada rosto um suicídio. Uma súbita vontade. Um tempo perverso e sem idade. No céu...uma ave solta um brado de azul. Agora só nos faltam os rugidos rudimentares do mar...

O sistema de pontos...na China.

A China está a iniciar o maior processo de engenharia social de sempre. Comparado com isto, 1984 de Orwel era uma brincadeira.

 

O sistema baseia-se na lógica dos pontos,( a exemplo da nossa carta de condução).

 

Hoje já existem em certos bairros e aldeias, pessoas nomeadas para apresentarem relatórios aos seus superiores, de toda a espécie de actos praticados pelos seus vizinhos. Conforme os actos praticados, as pessoas ganham ou perdem pontos. Esses pontos depois servem para toda a espécie de coisas que possamos imaginar.

 

A pontuação gira em volta de um máximo de 850 pontos e um mínimo de 350 pontos. Quem estiver abaixo dos 350 pontos, não consegue empréstimos bancários, não pode viajar e até em última instância, não arranja emprego.

 

O sistema para além de ser aberrante é perverso. Assim, a pessoa encarregada de registar os actos, se permitir que muitas pessoas percam pontos na sua zona, também os perde. E acontece o mesmo aos seus superiores. Este sistema faz com que haja uma contínua pressão sobre os cidadãos, para não perderem pontos.

 

Já existe também um sistema que para além de servir para efectuar pagamentos, gere os pontos das pessoas. Chega-se ao cúmulo dos encontros serem feitos na base dos pontos. Assim uma rapariga ou um rapaz, primeiro verificam qual a pontuação de cada um e só depois se relacionam.

 

Mas o sistema ainda vai “evoluir”. Se hoje já existem 170 milhões de câmaras de vídeo-vigilância, o estado chinês propôe-se instalar mais 400 milhões( isto é mesmo assim, 400 milhões de câmaras de vídeo-vigilância), câmaras essas que podem ler os dados biométricos e faciais de quem anda na rua.

 

Mas o mais espantoso é que muita gente aceita este sistema. E entre quem o aceita estão muitos jovens. Jovens que acham benéfico relacionar-se com base numa pontuação. Que acham benéfico que as pessoas sejam escrutinadas nos seus mais pequenos actos. Por exemplo, achar uma carteira e entregá-la ao dono dá pontos. Não limpar a entrada de casa pode fazer com que se percam pontos. Até atravessar fora de uma passadeira pode dar origem à perca de pontos.

 

Isto é o controle das pessoas pelo estado levado ao limite da loucura e da subjugação das humana.

 

Só espero que nunca tenhamos um regime assim, muito embora já sejamos continuamente escrutinados. Mas ainda não perdemos pontos.

 

 

 

 

Cidade de pó.

Cidade de pó. Cidade de cadafalsos. Cidade de últimas memórias. Cidade de apelos e de vozes profundas. Onde a resignação dos dias explode em soporíferos. Onde as razões se fecham em vencidos protestos. E o fénico dos hálitos enjoa na vertigem dos passos. Cidade de chuva e de resignação. Solene eco de uma partitura estagnada. E as avenidas são espaços de ilimitados anseios. Sangue e fé. Desdém de corpos. Frieza de rostos. Beleza de dolorosa fachada. Há um bailado sem fim nas cidades. Um prestar de contas. Uma anfíbia vontade de navegar. Pelos olhos. Pelos sentimentos. Pela insana fome de vergar o destino. Ai cidade. Lírica cidade. Meu eco redentor. Meu bailado. Minha vontade de ser outro. Minha exaltação de liberdade.

 

 

Alastram por mim os acordes de um tempo vago. Itinerante melodia de rotas sem destino. Sôfrego calcar da vida. Em cada passo. Em cada palavra. Em cada momento transformado em maresia. Consumição de mim. Passado de que me ausentei. Ríspida circulação sanguínea. Que me atravessa as carnes. Que me trespassa em vórtices de segundos. E me transforma...em nada. E me divide em tudo. E passo a ser o dia..que não ignora....todas as possibilidades do que já fui.

 

 

São assim as casas...

São assim as casas... inspiram fundo como nós... lançam-nos para a rua...

Crucificam-nos nas paredes... suspensos nas fotos desbotadas

Seremos sempre os mesmos vivendo uma vida que deveria ser outra...

Deslizamos... neve e gelo absorvem a nossa queda...

Ardemos como janelas abertas às marés

Queremos entender o emissário extravagante...

Aquele que obscurece o nosso céu... aquele que explode em nós

Aquele que aflige... o nosso inverno.

 

Expelimos a nossa jactância ...

Como quem urina contra as paredes... numa sensação de apagamento

Mijo alado... amarelo...baço...feito de impropérios...

Entretanto...

A tarde escurece... baixamos os olhos... a neblina agita-se na alma... é o mar

São os barcos... cenários de vidas que ardem num corpo gravado na pedra

É preciso sentir a eflorescência das flores que crescem nas montanhas

Tocar nos cabelos sedosos da chuva... molhar a alma num silêncio cavo ...

E sentir...essa

Selvática chuva...cinzenta...intensa como um rosto velado

Molhando... aquáticos verões espalhados pelas marés...

Que nos dizem que a nossa voz soçobra ao tempo

Que estamos presos ao ar... que os candeeiros da rua nos queimam os olhos

E que.. .tal como o luar é colossal... a penumbra é uma estreita rua...

Onde nos cruzamos com corpos e mágoas...

E com sacerdotisas de um tempo ...inexistente

Que nos envolve num manto de vento

Que desponta sob o vasto espaço

De um fantástico fragmento de vida...

Que nos pertence!

“Até aos cinco anos de idade não se deve ensinar nada às crianças"

Até aos cinco anos de idade não se deve ensinar nada às crianças”***

*** Aristóteles

 

Nesta bela frase de Aristóteles reside toda a liberdade de ser ser criança. Deve-se deixar as crianças apenas brincar e usufruir da sua vida de criança. Livre e sem responsabilidades.

 

Dos cinco anos até aos sete as crianças deverão ser educadas pelos pais no sentido da honestidade. Só a partir dos sete anos a criança deverá frequentar a escola. O ensino deve fazer-se em dois períodos. O primeiro até aos catorze anos e o segundo até aos vinte e um.

 

Continua a haver na educação das crianças uma dúvida. Não se sabe se se deve ensinar às crianças as coisas úteis à vida, ou as altas ciências sem as quais as pessoas podem passar.

 

Há aqui um paradigma que as escolas devem ultrapassar. Se por um lado é preciso ensinar as letras e as ciências, por outro estas devem ser completadas pelo ensino de coisas úteis à vida prática.

 

Há pelo menos quatro coisas que se ensinam às crianças: 1.º as letras, 2.º a ginástica,3.º a música; alguns acrescentam uma 4.ª a pintura.

 

Desde sempre os antigos acharam que a música deve fazer parte da educação. A música é o princípio de todos os encantos da vida.

 

Quanto à pintura é preciso mostrá-la às crianças, para que formem o gosto pela teoria das formas do belo físico.

 

Já a ginástica tem como objectivo o fortalecimento da coragem e do temperamento.

 

Baseado em Aristóteles – Tratado da Política

 

 

Esteira

 

Do tremeluzente escuro emanam os olhares fixos em nada...

O teu corpo é um mundo nu...um fio de seda abandonado sobre a areia...

 

Não te quero falar...

Não te quero dizer que nada aconteceu...que a luz se deitou e eu desapareci.

Quanto tempo demora um corpo a desaparecer?

Um corpo que tem o tamanho da eternidade...

E que habita as águas do mundo...

com as suas fosforescências de sal... e nada.

 

Uma respiração caminha ao nosso lado... mas não produz vapor... é escura... febril

Olho para ti como um caminho sem memória... uma insónia sem silêncio...

Perto de mim... reluzem ainda as brumas coalhadas da inocência ...

Um navio deita-se na praia... e nós... perseguimo-nos na sua esteira!

 

 

Renascimento

Era um dia oco e estreito. Dos olhos pendiam-lhe vasos com flores impossíveis. Ruas tumultuosas. Tácitas imagens de infâncias imemoriais. Já nada era. Já tudo tinha sido. E uma solidão estéril moveu-se para dentro do seu peito. Aconchegou-se em si. Conhecia essa solidão. Esse abraço interrompido com a alegria. Essa fórmula injustificada de representar. De se representar. Como se tivesse entrado num desencontro com as coisas. E tivesse perdido a sua ligação ao mundo.

 

Depois...renasceu. Como se tivesse percorrido todas as distâncias que o separavam de si.

 

E fez o que era mais simples. Viveu como quem pergunta pelo silêncio metafórico dos gestos. Os gestos. Magras promessas de alegrias virtuais. Toalha estendida ao baloiçar da alma. Caminho que nunca chega. Progressiva hostilidade da luz. Que cega. Que nunca chega a ser.

 

E seguiu...como se tivesse sentido um súbito empurrão da vida. E convenceu-se de que tinha abraçado a decrépita magreza de um deus informe. Ofendeu-se com a sua própria heresia. E com olhos de outono...sentou-se na terra...e sorriu.

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