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folhasdeluar

Poesia e outras palavras.

folhasdeluar

Poesia e outras palavras.

Estrela vacilante

És sempre tu minha vacilante estrela

Que corre para me sentir os braços

És sempre tu minha comprida vela

Que se ergue de mim para habitar os espaços

 

Pegar na luz e oferecer a minha claridade

Pesar em balanças de gelo todas as verdades

Quebrar a primavera que vive nas tenazes

Sentir o enredo dos caminhos a despertar por dentro das raízes

E pensar nas coisas...que já não me esperam.

 

Apesar de tudo continuo aqui...

Como um grão de sal exposto à poeira das águas.

Tempo suspenso

Quero falar do tempo. Tenho que falar do tempo. Mas não sei em que tempo estou. Em que tempestade acostei. Em que irracional delírio me fendi. Quero atravessar o tempo como um asséptico raio de sol. Ser dono da distância. Germinar numa chama. E saber precisamente o que é meu e o que me sobra. Que espaço ocupo em cada pessoa. Que idade têm as minhas ideias. Que sujidade preciso lavar em mim. Mas tenho que falar do tempo. Do meu tempo-homem. Do mundo que perpassa para além de mim e do...tempo. Tenho que falar dessa poeira cósmica que nos faz envelhecer. Dessa lua a nascer. Desse verão a acabar. Deste meu céu sem alternativas. Deste meu inferno sempre pronto...para mim. Quero falar da real surrealidade do silêncio. Das minhas emoções. Dos meus espaços abertos ao vazio. Quero ouvir as ladainhas. Rasgar as vestes das penitências. Cair como as folhas douradas dos carvalhos. Atapetar chãos. Ter paciência para com o destino. Mas quero falar do tempo. Falar da claridade que me estala na alma. Saltar sobre os precipícios. Não reflectir. Estugar o meu passo ao encontro da pergunta que não sei fazer. Nem é importante que o saiba. Nem que a faça. Mas quero falar do tempo. Até que os meus portões se abram e a tarde desfaleça. Sem sombras nem urgências. Sem fechaduras. Sem ser o que não sou ...mas sendo o que também não sou. Contradição. Asco. Lassidão. O tempo é o meu corpo. Vive no meu corpo. Deita-se com o meu corpo. É o meu arco e o meu violino. A minha inoportuna aderência à realidade. O meu acrescento. A minha mutilação. É tudo o que me sopra da memória. O meu ar. O meu esvaziamento. O meu tempo...é a minha solidão. E é também o espaço aberto. Ao meu voo. À minha suspensão.

Densa pedra

Densa pedra anunciando o duro poente

Fecho o olhos neste cerco de espaço e cal

E paro...escondido num descampado de fantasmas

É como se as flores não existissem

E eu ouvisse o eco dos teus olhos

A caminhar nos recantos cruéis do silêncio.

 

Caminhos abrem-se...secretas plumas a doirar paisagens

Oblíquos mares perpetuam-se nas praias

Suspensos reinos tremem no frio da raiva

E eu reinvento madrugadas...

Como se crescesse no meio de um mistério.

E o frio se quebrasse na minha aura de cristal

E fosse a minha eternidade.

 

E de repente há um muro que me envolve

Uma teia de fios entrançados em violinos

Um pulo de seda cobre os olhos raiados do meu sono

E o sémen da espera treme no bafo dos espelhos

Como qualquer coisa que cai na parte desconhecida de mim

Como dois raquíticos jardins ensonados

Como uma porta disforme que se abre para o antro das brumas

De onde ninguém volta...

 

Como se fosse feito num dialeto de auroras boreais

Continuarei suspenso nesta minha forma de nascer todos os dias.

Que bem se está aqui!

Carrego comigo a pele luzidia do passado. Cada passo que dou é um prego cravado na vida. Sei quem sou. Adivinho-me nesta rua empanturrada de gente. Que chatice não saber quando virá o futuro. Que aborrecimento ver o esfumar da compreensão. O desabar de um corpo que julgava ter. Mas que já não é o mesmo. E penso em como conseguimos morrer sem o saber. Como conseguimos deixar para trás as nossas peles rosadas. Como vamos ao encontro dessas ridículas mortes. Contentes e inocentes. Somos inocentes. Estamos inocentes. O nosso crime foi apenas o de sermos feitos de carne e osso. E brindamos à nossa própria despedida. E sabemos de cor todas palavras do nosso epitáfio. E compreendemos toda a extensão das nossas estrofes. Toda a dimensão dos nossos poemas. Poemas. Somos poemas que nunca acabamos. Somos poemas que nunca começamos. Somos poemas que passamos. De mão em mão. De olhar em olhar. De sentimento em sentimento. E um dia dizemos adeus. Aos choros. Às cidades. Às mais nítidas recordações. E penso. Quantas pausas fazemos? Por quantos intervalos passamos? Quantas vezes semicerramos os olhos? Ali ...parados entre o momento em que somos. O momento em que não somos. O momento em que somos e não somos. Tudo ali misturado na nossa mortificada incompreensão. E subitamente...na imobilidade do nosso coração...tudo se completa. A nuvens emergem da nossa alma. O mundo é um eremitério onde discretas torrentes de água assomam aos olhos. O canto dos pássaros sufoca os sentimentos. Divinas angústias assolam a tarde. E eu sorrio. Abro a janela. Pego com mãos de criança na minha ingenuidade e digo: - que bem se está aqui!

 

O santuário

Perto do local onde vivo existe um pequeno santuário ao ar livre. Hoje, pela manhã um homem acendia uma vela e benzia-se. Pensei no que ele estava a fazer. Pensei se o acender da vela não seria o acender da sua fé, sem ele perceber que ele próprio é a sua própria fé. O homem é maior que a sua fé, é maior que o Deus que ele venera, porque o homem existe e fabrica a fé. Deus é apenas o veículo que transporta o Homem para a sua essência. Ou será apenas uma desculpa para o Homem não se aceitar como sendo ele próprio a essência do Mistério e para não se pensar como Ser autónomo?

Fino fio

No fino fio a teia encrespada

Na súbita folha a queda dos olhos

Aspiro o rasto do nevoeiro

Despenho-me nas asas de uma borboleta

E abraço a salinidade do crepúsculo.

 

Clandestinas flores espalham perfeitos aromas

Metafísica de estrelas a tecer rios e nuvens

No pólen do destino abraço o mar

Nada me importa..nem sombras nem cadáveres

Prefiro esperar os relâmpagos do sonho

E ser um chão de sol que podes pisar

Ao mesmo tempo que os fantasmas deambulam pelo meu corpo.

 

Quero acender luzes no colapso das andorinhas

Aspergir as folhas ressequidas das avencas

Dizer que existo como um corpo ou um lago

E atar o meu destino...ao rio que me atravessa

E leve...leve...se apaga em mim.

 

Vidraça...

Pego na minha tarde. Leio. O livro é um túmulo vivo. Dele despegam-se palavras. Ideias. Espaço e pedras. Silêncios. Portas que se abrem. Campos ermos e plantas secas. Muros. Jardins suspensos e floridos canteiros. Tentações que já apodreceram. Mãos que já caíram. Vozes. No entanto...a tarde pega-se a mim. Estática frontaria da passagem das horas. Leio. As memórias rangem. Escorregam pelo soalho envernizado. Leio. Há uma escadaria em cada livro. Há bolor e escuro. Paisagem e amor. E há uma tarde de espectros a assomar à vidraça. A tarde trás um odor a sentimentos coalhados. Uma irresistível anemia. Uma imobilidade de mofo. Prende-me. Leio. Busco-me em cada frincha do silêncio. Divago. Leio. A casa sufoca. O medo range. Leio. A luz entra. Circula livremente pelo meu corpo. Aquece-me como uma metáfora. Leio. Esvazio o olhar. Sigo a rua. Sinto a brancura de um cansaço. Percorro-me como quem passeia num caminho de terra virgem. A tarde abraça-me. Leio. Um pássaro petrifica-se na janela. Lança uma melodia. Escuto-o na minha invisibilidade. A tarde desfaz-se. A luz torna-se veludo. Leio. Olho em volta. O ar está deserto. O poente é uma costura no horizonte. O meu olhar prolonga-se. A tarde caiu. Já não leio.Fico...