Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

folhasdeluar

folhasdeluar

O berço

A princípio não pensamos na inevitável tragédia. A princípio nem sabemos que existe tragédia. A princípio não sonhamos. A princípio o sonho é a própria vida. Saímos do nada para percorrer as ardilosas estradas do mundo. A nossa identidade corre no nosso sangue. O nosso olhar possui o efervescente brilho da curiosidade. Dedicamos a vida a quase tudo. Queremos possuir a sabedoria das coisas. Erguemos os olhos e tocamos na sublimação da vida. E nesses dias somos nadas. Somos a doce efervescência da luz. Somos luz. Não sabemos de infinitos. Não sabemos de almas. Estamos demasiado ocupados com a nossa própria forma de viver dentro do casulo do sonho. Mas um dia...sem sabermos bem como...descobrimos que nos afastámos. Que embora continuemos a sonhar...a vida endureceu. Endureceu-nos. Começamos a pensar em futuros. A pensar em infinitos. A pensar que não somos infinitos. Que somos finitos. Essa é a nossa descoberta. Isso é o que nos faz suspender a alma. Essa alma de luz e sombras. Essa alma única. Essa alma que não retorna. Procuramos depois a vida em lúgubres alamedas. Sentimos o relevo do tropel dos dias. Ficamos suspensos. Nunca mais voltaremos...ao berço.

Cântico distante...

Somos ânsia e impaciência...desmesurados e súbitos...

Somos corpos feitos de poeira..mas...subimos aos mistérios...

Procurando alimentar a alma com contentamentos...

Porque a vida...altiva...florida...severa...

Beija-nos as mãos escassas...feitas de aço e surpresas...

Ligam-nos a ela pequenos filamentos …

Que se roçam nas nossas sombras...sorrateiramente

Por vezes...com passos rápidos...a vaidade entra em nós...

Fazendo-nos esquecer..que a vida...é uma tela que não vemos

Uma tinta incolor...uma pedra...que mal seja tocada pelo nosso dedo...

Se desfaz em pó...como se fosse um cântico distante...

Amanhecer...

Frente a mim....o cume de alabastro onde a luz se afia

Por detrás...uma planície onde acaba de nascer uma saudade

O rosto sublime do verão carrega-se com as algemas nacaradas do infinito

Todas as coisas têm uma melodia

Todos os pequenos detalhes das estradas e das ervas

Todos os caminhos onde o corpo floresce na sede de ser ave

Nada se faz sem o sublimado espaço dos desertos

Nada se diz que não venha de um profundo e onírico poço

Onde a alma se desdobra em intensas rosas jaspeadas de esperança

Como se tivessem a leveza de uma hora tranquila

E fossem como o renascer de um lento e perfeito dia.

A orla das gaivotas

Quero que no meu mais profundo grito se abrigue o sangue visionário das memórias

Quero que todos instantes sejam visões de remotas ilhas inexplicáveis

Onde o assombro começa nas chagas das papoilas

E os porquês rejubilam nas maçãs do rosto de um qualquer tempo imaculado

Quero perdurar por dentro da circuncisão da terra

E revelar o segredo íntimo das medusas

E esperar... esperar que os corpos se ergam como fotografias de mármore

Depois... quero voltar ao instante em que os dedos cansados

Desenham ternura num papel enrugado

Mostrando-me os vertiginosos arquipélagos

Que despertam na orla embriagada das gaivotas.

Quando a noite se cala

É quando a noite se cala e o silêncio usa véu

Que tudo acontece no interior misterioso da minha vida

Que o espaço que fica entre mim e as palavras é preenchido

E as respostas chegam até à superfície

Numa afinidade única com o espaço universal

Quebram-se as grades da profunda prisão

Que me separam do mundo

Os sentidos afinam-se...misericordiosos e solitários

E... digo o indizível...

Digo que o silencioso espaço perdura no tempo...solitário

E que eu perduro no tempo...solitário também...

Digo que não encontro fora de mim...

O que não tiver dentro de mim

Que os meus sentimentos submersos pelos dias

São a razão da minha existência na noite...

Que a minha grandeza de homem é um ruído distante e misterioso

Que vai crescendo...crescendo...até me olhar de fora...

Como se admirasse uma noite estrelada

Como se esquecesse que as casas têm gente e... corações.

Nós somos apenas um indício de Razão

Ou uma raiz silenciosa crescendo até ao esquecimento

A nossa afinidade com o Longínquo

É apenas um indício velado...um perpétuo distante

Que as profundezas da Vida...escondem...

A roda lírica...

Entrar. Nessa evidente inutilidade de nos reconhecermos em alguma coisa. O absurdo do inútil é que a idade não toca na nossa porta. Chega. Entra. Senta-se. E vamos caindo como quem aperta as mãos ao dia. Como quem cumprimenta os pontapés que as horas nos trazem. Simbólica dissolução. O evidente chicotear da luz a marcar o nosso compasso. A nossa cegueira a galgar a espera da nossa noite. A enganar-nos. Ao nosso lado...ruas e janelas e espelhos. Tudo feito de um vidro embaciado. A nossa extinção caminha connosco. Senta-se connosco. Pobres de nós a olhar de esguelha o que desconhecemos. A distrair o olhar pelo brilho ofuscante das nossas preocupações. A vida a extinguir-se nesta roda lírica. Condição de nós. Ebulição de sangue. A nossa força de vontade a ofuscar a trama dos dias. Um minuto. A vaidade. O jogo do parecer. O jugo do perecer. E tantos que já passaram pela mesma porta. E tantos que já desapareceram nessa porta entreaberta. E de um momento para o outro...a luz. A euforia. A esperança. A condição de caminhar. A direcção que não tem direcção. E...apoiados nessa bengala de ilusão....saltamos os abismos. E vamos em frente. Sem contar os degraus. Sem contar a ninguém. Sem contar com os impossíveis. Rodamos. Rondamos. Acenamos. E crentes seguimos pelas margens de nós.

 

Pág. 3/3