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folhasdeluar

A minha poesia, é a minha incompreensão das coisas.

folhasdeluar

A minha poesia, é a minha incompreensão das coisas.

Lágrima de céu

Nus fecundámos os punhais da noite

Nus descobrimos as fronteiras mais secretas

Depois extinguimo-nos...como letras de uma língua morta

Ou como astros que se gastaram no fogo da última noite

 

Invariavelmente agarro-me ao vestido da noite

Estrelas caem na lonjura de uma fronteira inexistente

Desenho a tua presença num castiçal de ansiedade

De onde brota a luz efémera...que jamais me acordará

 

Vem como se fosses uma suave sentinela de mim

Vem com o teu híbrido sorriso de flor extinta

Que entra pela minha noite...livre...

Como se eu fosse o areal onde lentamente te espraias

 

Espero por ti como quem se agarra ao cordão umbilical da terra

E mesmo que o sol desabe num caudal de outonos

Avançarei...de olhar perdido...

Como se encontrasse na espessura de cada barco

Como se visse na ondulação horizontal das searas

A tua lágrima de céu a correr para mim.

Subitamente acordar... e ser...

Podem as palavras saltar a margem que nos separa

Pode o riso mascarar a primavera

Pode até um raio de sol pisar os olhos de um homem

E as praias tecerem esperas invisíveis

Pode a nossa pele dar flor e erguer-se como uma tocha

Pode não haver princípio para o riso...

Nem alma nas flores das camélias

Pode o impossível voo das pombas enternecer a órbita da luz

Se as tardes se propagarem na superfície enfastiada do tempo.

 

Que sejamos finas pegadas

Que depressa os dias nos levem em direcção às folhas que caem dos sótãos

E os sonhos...esse entoar de árias desconhecidas

Que nos levam...que nos tocam...

Como serpentes que despertam no fundo de nós

E se enrolam no nosso corpo com olhos de frenesim

Como ruas...como naufrágios...como metáforas que nos mordem.

 

Despertar e ver que tudo é muito fácil

Descer ao lado inútil da chuva...e deixar acontecer

Subitamente acordar... e ser...

Florescer

Na hora em que o sol abre uma ferida nos olhos

E os contornos da luz lembram a voz dos ausentes

O vento sopra com o som de pássaros metálicos

Lambendo as nossas feridas silenciosas

Que florescem nas hastes da lua.

 

No muro da noite...assentam as sombras que nos tecem

O corpo é uma raiz a pedir silêncio

A pedir que os nossos fantasmas adormeçam sem nós

E que os musgos que nos tolhem sejam desfeitos

Pelos longos naufrágios que nos sustêm.

 

Sentir

Quando parto é para sentir mais um pouco

Quando parto é para que a minha pegada ressoe na incontingência do mundo.

 

O dia toca depressa no fundo da manhã

Vejo pássaros e naufrágios em cada rosto que dá à costa

Os meus olhos hirtos alojam-se na ponta da terra

E...até as sombras me são indiferentes

Às vezes ergo-me por dentro da minha metáfora

Outras vezes boio na própria fúria de mim.

 

Há gestos simples...frases que se escondem

É tempo de lamber os pensamentos que se arrastam pelos limites da luz

As palavras pairam...perdidas...como planetas sem memória

Mas...entre nós...o estio derrama os seus raios de vida

Como um salteador de corpo perdido na paz de si mesmo.

Em meu redor...

Em meu redor...

As memórias e as paredes que se fecham dentro da minha pele

Em meu redor...

A sombra que escuta a abolição dos dias

Devagar...percebo que o mundo me espera...solitário

Como se não sobrasse mais nada de mim...

 

Obscuras cidades tecem brancas lendas

Belas palavras constroem mundos de angústia

Outras...são apenas gestos de sílabas atónitas

Que se encostam à noite...como primaveras...

Ou como razões desconhecidas...

Madrugada...

Pela garganta dos dias escoa-se a voz do mar

O vento tece deuses na ondulação dos cabelos

Digo-te que as minhas nãos agarram as miragens

E pegam na sombra do mundo com a mesma fé com que nasci

Secretas fontes escorrem onde o tempo não passa

Inertes os braços...vazios os frios...

O tempo divide-se entre uma estátua cega

E um claustro devorado pelo boiar das luzes

Todas as indecisões

Se erguem do fundo das imagens coladas ao poente

Todas as vontades se dividem numa beleza de ondas cadentes...insólitas

Podemos criar um rio com as frestas do nosso sangue

Podemos criar um vento e espalhá-lo pela lembrança de um nome

Podemos até...criar uma injustiça e um nojo

E buscar na face distante dos outros

A linha imaginária que não nos leva a lado nenhum

Mas procuramos sempre a linha que nos divide

Na madrugada que nos lavará da perdição dos astros...

E de nós!

Grades...

Por vezes é difícil encontrar uma manhã

Em que o caule das coisas faça sentido

Algemas de fogo tecem o vaivém das luas

Dentro de mim cresce o fumo anónimo das ausências

As sombras do cais multiplicam-se na voz trágica do sol

Por fora da alma os pássaros recriam voos alquímicos

Por dentro do fumo desenham-se ramagens de antigas demoras

Tudo flui ...sem murais nem vazios...tudo está dentro de tudo

Mas o pranto dos telhados aquece a nudez das luas

Tudo acontece como se caminhasse numa outra era

Tudo arrefece na ferocidade do tempo

Os corpos...as memórias....

Os prados onde as abetardas se espraiam em voos rasantes

E até os musgos que trepam por nós como prantos

Nos falam da presença ritual do silêncio

Onde se misturam estrelas e rostos...

E onde as nossas grades servem apenas para nos destapar o sol

Que escondido brinca connosco...

Ao jogo fugidio dos dias.

O testamento de Maria Helena Vieira da Silva

capa 32.jpg

(Arraial 1950 foto extraída do livro( minha pertença) Vieira da Silva de Jacques Lassaigne - Guy Weelen)

Testamento

deixo aos meus amigos

um azul cerúleo para voar bem alto

um azul cobalto para a felicidade

um azul ultramarino para estimular o espírito

um vermelhão para que o sangue circule alegremente

um verde musgo para acalmar os nervos

um amarelo ouro: riqueza

um violeta cobalto para o devaneio

uma garança porque deixa ouvir o violoncelo

um amarelo bário: ficção científica, brilho, esplendor

um ocre amarelo para aceitar a terra

um verde Veronese para a memória da Primavera

um índigo para que o espírito se ajuste à tempestade

um laranja para treinar a vista de um limoeiro ao longe

um amarelo limão para a graça

um branco puro: pureza

terra de Siena natural: a transmutação do ouro

um negro sumptuoso para ver Ticiano

uma terra de sombra natural para aceitar melhor a melodia negra

uma terra de Siena queimada para o sentimento da durabilidade

 

Maria Helena Vieira da Silva

in Antonio Tabucchi - Estórias com figuras

P.S. - belo é o testamento de quem deixa memórias coloridas...e belo também é quem pinta os seus amigos com as suas memórias.

Olhos encantados

Ali caem as lágrimas sobre o granito... solenes como sombras de menires

Caem sobre o esplêndido desequilíbrio do mar

Tocando...cegas....a transparência suave das luzes

Porém...o mundo nasce num silêncio azul... limpo e lúcido

Como um rochedo...um sonho...um promontório

Como uma palavra... ou um pequeno ponto tocando a superfície do chão

E tudo é porque tu és

E nada é aquilo que não sabes.

No centro do chão está uma manhã lisa

No centro da luz ergue-se a penumbra do voo alucinado das rolas

E tu pedes uma nova vaga...uma nova praia...

Onde possas descansar do medo e do mar.

 

Deitado na areia do esquecimento.

Finalmente desces ao denso labirinto feito de claustros e de segredos

As sombras erguem-se como vidros de luz

Ressurgem abismos e arquitecturas que só tu sabes

O espanto é claro e vivo

O mundo roda numa clareira de verde e águas rápidas

Desce para o mar como uma auréola de estrela e pensamento

E ali está...a flor...a rosa...a glória de ver a luz entrar na gruta

Onde o tempo se perde em desmedidas pressas

Como uma face feita de finas rugas

Onde a rouquidão do mar...atravessa as finas águas da manhã

E caminha...como um chão de pedra...

Através da solenidade dos teus olhos... encantados!