Como uma alma aberta ao sol...
Que visão do céu ofuscará o fim do verão?
Que amor antigo voltará no fim da sede?
Que canção embalará as aves que voltam na primavera?
Como o sol invade o deserto
As horas cismam dentro do nosso peito
Derramam passagens...abrem caminhos...
Como cal que arde na seiva da nostalgia
Desdobro o meu olhar pela nudez das mãos
Os dias passam lentamente
Dias quebrados pelo afrouxar de vidas
O sonho nocturno faz esquecer a corrosão da realidade
São horas de ficar imóvel
E fingir que dentro de mim não há cansaços
O vento derrama-se pela tarde
É difícil suportar o quebrar das flores
Dentro do medo o silêncio fala
A chamada do sul é uma alucinação
Pertencemos ao sonho e aos abismos
Pertencemos às palavras e à insónia
Fingimos que o nosso olhar é real
E quando falamos de aves falamos de pensamentos
Talvez um dia voltemos a correr pelas margens do Tejo
Talvez um dia vejamos
As primeiras luzes da manhã espraiando-se no lodo
Inesgotáveis luzes que não sabem porque vivem
Quebradas almas que deambulam pelo molhe
Se os olhos não brilharem ...quem brilhará?
Se o que vive dentro de nós se esconder
Quem saberá encontrá-lo?
Se na imobilidade do desejo
Sumarentas vozes se calarem..quem as ouvirá?
E depois...
Como crianças que pisam a areia pela primeira vez.
Desejamos tudo o que não sabemos
Desejamos todos os frutos e todos os outonos
as cores douradas e as ocres
Os dedos que percorrem o brilho cromado dos desejos
O correr dos dias..as verdades
Os telhados que protegem o nosso coração... destelhado
Mas a avidez inesgotável da escrita
Permanece como uma entrega..uma cumplicidade
Um comprimir de águas muito antigas
Que breves se despenham nas páginas em branco
É tão linda a textura do mar.
Aquele espelho enterrado na água que desperta as gaivotas
A nossa memória que se fecha nas conchas
Só o homem sabe abrir o tempo
Dos reflexos prateados da vida
Suspeito que daqui a nada
Apenas me espera o verde amargo da velhice
E que um peixe vermelho me levará
Como uma alma aberta ao sol...