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folhasdeluar

A minha poesia, é a minha incompreensão das coisas.

folhasdeluar

A minha poesia, é a minha incompreensão das coisas.

Hora lenta

Breve esperança a despontar na tarde

Sol de inverno olhar branco

Maré cheia caminho vasto

Sonho a despontar na proa dos veleiros

Beijo rápido e brusco....surpresa

Plenitude de almas em tarde leve

Perfeita respiração de dança

Hora lenta repuxo de água

Hora perfeita instante supremo

E leves os corpos bailavam na tarde

Espaçosos olhos riam para a vida

E na perfeição vasta da tarde

Clareou o nosso amor

Como se nos engolisse a infância e o poente

E ali vibrámos como quem renasce

Para todas as coisas que hão-de vir

Como quem transborda de amor!

 

Belém,5 janeiro de 1985

De mãos dadas

Conheço as emoções que cinjo ao peito

Jardim obscuro tremenda vaga

Esplendor de fantasia que transborda

Para o vento que ameaça o mar

Espuma de convés onde viajo

Quebradiço coração a expulsar desertos

Leve céu reino de paisagem onde me agarro

Corpo líquido caindo a pique dentro de mim

Não há noite nem lonjura

Não há receios na apoteose da alma

Apenas há uma busca estranha

Um constante trespassar de espuma

Um embalo maior que a madrugada

Apenas há um jardim

Que por vezes se quebra em pleno mar

Enquanto as nossas mãos dadas

Afastam o nevoeiro.

Para sempre

Transporto as horas sob um véu de estrelas

Os meus passos correm sobre dunas

E o veneno das sílabas fala-me de sustos e de memórias

Não foi assim há tanto tempo que as palavras eram outras

Que as horas não se distanciavam dos rios e das praias

Mas também eu era um outro

Era um medo...um verso...uma forma de dizer

Agora...longínquos sóis invadem o meu torpor

A minha voz já não é um fogo rente à tua face

E o meu coração já esqueceu o caminho suave das maresias

Em meu redor há pássaros

Que se insinuam na longevidade dos dias

Há uma lúcida amnésia de florestas e castanheiros

Há uma espessura que me aflora

Como uma fuligem que os ventos arrastam

E eu...escuto os sinos...os passos

O eco das grutas onde escondemos a lua

Não há lugares de sempre

Não há ruas sem fim

Há apenas recomeços

Por um instante...

Pensei que havia uma chama eterna

Um passado...um agosto único

Mas há uma surpresa...

Uma violência em cada sílaba..um nascer de novo

Onde fica o Destino quando a luz se apaga?

Onde mora o eterno fluxo dos olhares?

Disseram-me que se respirasse fundo

O mar não se cansaria de mim

Que os peixes seriam os meus marítimos guias

E a voz estonteante das gaivotas

Diria os poemas que perdi no horizonte

Mas o sol é dourado e eu deixo-me ofuscar

Traço riscos sobre folhas amarelecidas

Esculpo palavras no âmbar da noite

E para meu consolo...

Plantaram árvores no mesmo lugar onde estivemos

Agora já só me falta...

Desenhar nos seus troncos o teu nome

Para sempre...

Para alguém que partiu

Como dizia Thoreau, é preciso chupar o tutano da vida, para um dia não dizermos que não vivemos.

E chupar o tutano da vida é isso, construir serenamente uma outra vida. Ir ao encontro dos desencontros como quem quebra uma barreira de vidro. Ter a coragem de procurar no ar, no vento, um outro instrumento para tocar. Uma outra pauta que é preciso arrancar de dentro de nós. Ir. Como quem vai rodeado de uma luz intensa. Como quem deixa para trás as agonias. Como quem vence quem nada quer da vida. Por isso, Ana, vai. Rosto a acariciar um novo dia. Uma nova luz. Uma nova plenitude. Cavalga os teus cavalos de espuma. Os teus luminosos abismos. Vai. Ao longo dessa linha clara. Ao longo dessa lógica de vida. Deixa o teu rasto para quem fica. Deixa-o para que aqueles de quem gostas e que gostam de ti...te possam seguir.

Memória

Um dia hei-de flutuar onde nada me seguir

Terei um rosto aceso

Nas velas feitas com cera das Arábias

Serei a memória imobilizada num rosto

Uma estátua sem espaço...uma pele sem carne

As minhas mãos pegarão no sangue seco dos rubis

E deles farei as algemas da profunda noite

Dizimarei os fogos e os prantos

Serei autêntico

Como se ardesse num pedestal de lágrimas

Farei com que o mundo me transporte nas suas costas

Dos meus cabelos sairá o esquecimento

Ornamentado por duas luas pálidas

Sem chama nem alma.

Serenidade

Vinhas feliz silenciosa e nua

Trazias contigo o coração insone...aceso

À tua volta o tempo ciciava por entre os rigores do inverno

Sabias que já não havia naufrágios

E o sal permanecia agarrado ao teu corpo

Também sabias das filas intermináveis de pessoas

Desejosas de abraçar o mundo

Sabias do luto e da transpiração das casas

Ventos longínquos traziam o aroma de trigos e amores profundos

Rudes tons desbotados pelas lembranças

Vinho e tempo juntos numa prece

Dormitas agora com a boca dourada pelos dias de sol

Como se fosses um navio acostado aos seios quentes da maresia

A tua parte obscura senta-se encolhida junto à borda dos dias

Cantilenas espreitam dos barcos encalhados

Secretos...como fantásticos fantasmas

E pensas nas cores e na lisura que cobre as pedras

Pensas nos xailes negros que gravitam em torno de uma insónia

És como um coração de jade acabado de se dar ao mundo

Distante …

Como um retrato arrumado na gaveta mais esconsa

Ainda és tu...ali...de pé...serena.

 

Poema publicado na antologia da Chiado Books - Entre o Sono e o Sonho Vol. XIV

Adormecemos

A ti te falarei das praias e da luz rasa dos penedos

A ti te falarei das sombras cruas e gestos gastos do meus medos

A ti confiarei o meu silêncio nu

Enquanto o rasto de um verso estala no teu caminho

Direi o teu nome como se me agitasse o vento

Habitarei os teus olhos

Como quem visita a cúpula lisa do encanto

Guardarei para ti a minha última respiração

Como uma brisa que colhe flores que caem dos teus cabelos

Um dia seremos o espaço antigo e calcário

Muro de amor a cruzar o frenesim dos invernos

Seremos o retrato das coisas secretas

Em frente teremos o bafo branco do silêncio

E o brilho nítido de um fantasma em cada janela

Porque na imóvel noite

Adormecemos.

Caminhos sinuosos

Sinuosos caminhos

Cruzam-me como facas espetadas na noite

Pouso a minha mão neste fardo

Que se aconchega a mim...era eu?

Ou era um nó na garganta a gorgolejar silêncios?

Nada...basta-me o vento

A agarrar-se ao banco onde sento a solidão da tarde

A janela..os barcos...o relato das coisas simples

A seguir..vem o consolo de me desmoronar por dentro de ti

De me aproximar do mundo..de rir

De resistir a todas as gotas de veneno

Deambulo pelas desculpas

Ninguém quer saber de segredos

Nem de corpos estendidos

A prestar vassalagem ao tempo

São estas coisas que nos fazem sentir

Que somos química e astrologia

Silêncios estendidos sobre a água

Borboletas..ócios...forças que não temos

A minha mão segura aquilo em que acredito

As horas...as perdas...o filtro da urgência

Tropeço nas ratoeiras dos rios...nas vozes

Naquilo que se estende à minha frente

O mundo é uma cegueira

Um hieróglifo incapaz de explicar porque se amam os corpos

E na falta do riso

Desembarcamos em espinhosas margens

Agarrados ao voo das aves

Posso dar-te tudo o que quiseres

Todas as hipóteses de seres nome e rumo

Hei-de fazer das tuas pálpebras

O meu olhar...o meu mundo...

E tenho a imperdoável certeza de saber...

Coisa nenhuma.

 

Rabisco de silêncio

Dissipo-me..

Poeta e homem na volatilidade dos dias

Erguendo a bandeira das palavras

Sob a forma de cadernos atirados ao vento

Sigo a noite.. e os anos..e as mortes

Aproximando-me da última página

Da página desarrumada...esconsa..

Aquela onde se cruzam pensamentos e olhares

Em mim cristalizam-se manhãs

Listas intermináveis de santos e loucos

Rabiscos... memórias...locais mágicos...

E a traição de mais uma página...em branco

Sento-me no passeio de uma qualquer rua anónima..como eu...

Como o riso que estendo a quem me olha

Viver não é só um hábito

É um porto...um ancoradouro

Viver é procurar no fundo das palavras...a página

A tal página onde o segredo se desvenda

E a praia se desdobra em rostos

Há bagos de uvas caídos pelo chão

Ilustram os nomes das nódoas que nos cobrem

Vinho...poema

E a subjectividade de ser alguém sentado na rua

Seguir o olhar de alguém

Simplesmente cruzar a ponte de cristal

Rir dos silêncios solitários...mãos solitárias

E não saber onde colocar os dedos

Em todos os momentos há traições

E alegrias e chuvas encarniçadas

Em todos os cadernos

Há nódoas de nevoeiros..demoras..aproximações

Se queres fazer alguma coisa

Vai correr o mundo...ilustra a tua página

Calcorreia a imaginação

Acontecem romances em todos os quadrantes

Em todos os rostos que não queremos esquecer

Em todos os pavios de velas...latentes

É preciso despertar o outono...morrer de fartura

Corroer a absorção das águas

E rabiscar...lentamente... os silêncios...

Recônditos lugares

Passei pelos gestos...pelas cores

E deixei para trás os retratos

Embarquei num eco feito de estátuas

Aprisionei os barcos

E tirei proveito da infindável solidão dos pauis

Ainda hoje vejo as formas e as razões que o tempo carrega

Tempo aberto ao riso das viagens

Aos ossos que carrego como uma bagagem

Ao súbito sentir dos ventos e ao rumo das areias

À força inesperada da solidão

Ao corpo e ao sentir dos espelhos

Queria relatar a força das flores

E o secreto abandono das medusas

Passei pelas algas e cresceram-me os instantes

Magoei a visão nostálgica dos dia

Saltei com as corças e voguei pelos teus olhos

Enigmáticos sons imitavam o teu sorriso

Debrucei-me sobre a tua boca

Escutei as lendas que contavas

Como velhas fábulas cheias de luminosa paz

Mas não esqueci a esparsa ausência dos teus sinais

E por breves instantes desci aos longínquos dias

Onde a brancura cristalina dos corais me falava de extensas ilhas

Que o incerto mar deixava conhecer

E que eu bebia como uma luz

Que atravessava os recônditos lugares

Onde possivelmente te encontrarias..

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