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folhasdeluar

Uma coisa é uma explicabilidade inexplicável...Hugo von Hofmannsthal

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Uma coisa é uma explicabilidade inexplicável...Hugo von Hofmannsthal

Como uma pirâmide na solidão do deserto

Cravo os olhos na imagem que passou

Sei que a memória

É como uma luminosa fonte de outros lugares

Recomeço de lumes e de espera

Cristal de sonhos rasgando a noite

Esqueço os recantos onde o vazio espera

Os sonhos cintilantes...o corpo desalinhado

Percebo que é vida é um correr imparável de imagens

Filmes...rio esculpido em sons

Sempre com o mesmo final

Sempre com essa irrelevante irrealidade

Guardo a tristeza dentro deste corpo

Como um segredo antigo... esvaziado

Talvez um dia o meu corpo se lembre

Que o riso chega do fundo de mim

Talvez um dia da escuridão desgastada do corpo

Se ergam astros luminosos

Talvez no lume da memória a vida volte a ser cristalina

E o vazio...

Seja apenas um imenso mar cheio de resíduos cintilantes

Sei qual é o segredo que está suspenso no tempo

Conheço a germinação do medo

E a ternura do regresso

Sei que tudo é o avesso de tudo

E que as estátuas se riem dos sonhos

Sei que todas as coisas

Se materializam numa cidade agoniada

Posso tocar nas cores...desfazer os osso

Descobrir o vazio das estrelas

Conheço o peso dos desejos e a sinfonia das catástrofes

Eterno é o mistério..irrelevante a realidade

Estendo a mão...toco na minha imagem...existo

Como uma pirâmide na solidão do deserto.

 

Breves notas musicais

 

A sujidade do tempo rola sobre os poros das palavras

Distantes corredores assombram os passos da paisagem

Nada se distingue na rispidez branca da manhã

O corpo...alimenta-se de frios e de sombras

Pedras despejam iodo sobre a maré vazia

E as portas extinguem-se num lento desmoronar

Rodopiam plátanos..afagam-se veias

O interior dos ossos sacode o cansaço

Mas porquê este vulcão a existir?

Porque está fechada a fome de infância?

E fico-me a comer as fotos desfocadas dos dias

A beber a espuma..a rasgar a pele

E o medo da noite a zumbir num rodopio de andorinhas

E o cansaço a desfalecer com o crepúsculo

E o coração a enxamear a rua

Com incandescências de devassidão

E a longevidade dos fogos

E a lua rente à pele

E o amargo sabor dos receios

Minúsculos torrões de prata cobrem a nossa voz

Descalços passeamos as sílabas

Breves notas musicais aquecem-nos

E tudo se extingue numa sombra inacabada.

Causas para a tirania na Rússia

Um povo que não sente a própria servidão, é necessariamente tal que não concebe a mínima ideia de liberdade. Todavia, como a absoluta falta desta ideia inata não provém dos indivíduos mas de circunstâncias inveteradas que acabaram por extinguir neles toda a primitiva luz da razão natural, a humanidade exige que nos compadeçamos do seu erro e não os desprezemos inteiramente, ainda que sejam desprezíveis. […] Por isso entendo que esses povos mais se devem lastimar que odiar ou desprezar, visto que, sem o saberem são inocentemente réus do crime de serem escravos, do qual bem catigados estão. Todo o ódio, todo o desprezo , e se algum houver mais afrontoso e feroz, deve o pensador dirigi-los contra essa pequena classe de homens que não sendo estúpidos nem ineptos, e não podendo ignorar que são escravos na tirania, negam descaradamente a verdade e se atraiçoam a si e aos mais, correndo à porfia a bajular, honrar e defender o tirano, e sendo os primeiros a oferecer o seu jugo a cerviz infame; e isto com a única condição de que por eles seja dobradamente agrilhoado e oprimido o mísero e inocente povo. […] e é que da mesma fidelidade, cegueira e obstinação com que povos na tirania combatem pelos seus tiranos, se deve inferir que outros tantos ou maiores esforços fariam pela liberdade, se chegassem um dia a consegui-la e se , em vez do nome do tirano, desde o berço, lhe houvessem religiosamente ensinado, como coisa sagrada, o de república.[...] Como prova disso, observe-se que sempre que o tirano excede aquilo que a estupidez humana pode tolerar, o primeiro, ou antes, o único a ressentir-se das extremas injúrias é sempre o mais baixo povo, o qual, na sua plena ignorância, o tem todavia por um deus; e ao contrário, os últimos a ofenderem-se, ainda que sejam muito injuriados pelo tirano, são sempre os da mais alta classe, não obstante estarem convencidos de que ele é muito menos que um homem.”

 

Este texto actualíssimo é baseado no Tratado da Tirania e foi escrito pelo Conde Vittorio Alfieri em 1777. Alfieri passou por Lisboa em 1770-1771

Noite e insónia

Chegamos com obscuros olhos

Rasgam-se em nós mapas e arquipélagos

Sentimos as palavras que nos alumiam

Somos medo e granito e somos segredo

Na brancura dos nossos passos dormitam sombras

Mistérios...remotas eras

A vida surge ao nosso olhar

Como a alucinação dos promontórios

Mares e tempestades assolam a nossa alma

Os pântanos são planícies feitas de prata suja

Construímos lendas a partir dos sinais que as velas ostentam

Apontamos o dedo aos martírios

E descobrimos

Que dentro da tempestade há um perfume inebriante

Sabemos que pertencer à tribo das constelações é como uma febre

Uma febre que nenhum termómetro assinala

Assim...

Há que alimentar o nosso rosto com novas paisagens

Há que caminhar pelos dedos dos alucinados

Ser a pelagem da vida

E se descobrirmos no canto dos barcos as rotas desconhecidas

É porque dentro de nós ainda vive um sonho inacabado

Um sonho que nenhum mar corroeu

Nem nenhum sal desbotou

Sabemos que cada vento trás consigo um poema

Que cada passo nos aproxima do corpo dos frutos tropicais

Sabemos que o tempo é um agitar de lutos

Surdos tempos...doces cantos

Que nos acolhem

Dentro de um xaile feito de panos antigos

Pesados como a noite e a insónia...

 

Uma ruga que empalidece

Espiamos a vida...queremos ser grandes

Como se crescer

Fosse apenas a alma a explorar as razões do corpo

Mas voltamos sempre àquele lugar onde fomos pequenos

Onde cabíamos no voo firme dos sonhos

E onde explorávamos todos os segredos

Talvez dentro de nós

Hajam silêncios que merecem ser contados

Luzes que se acendem na urgência de ganhar espaços

Os caminhos perdem-se nas penumbras

E os dias tornam-se espelhos onde martirizamos os rostos

Mas há um caminho que percorremos

Para trás e para a frente

Uma ruga que empalidece

Perante a ferrugem fascinada da pele

Mas ficamos presos

Agarrados à impossibilidade da fuga

Na desordem de sermos nós

Na nossa mão cabem todas as banalidades e todos os risos

Todos os corações

E todas as luzes que alumiam as rotas incertas

Fosse eu uma criança e diria que nada me dói

Que o voo das aves culmina numa mariposa estrelada

Que as estrelas são mundos a brincar aos sóis

E que o meu olhar fica hipnotizado com a beleza das ilusões

Fosse eu criança e saberia muito mais de mim

Cantaria pelas ruas até despertar os silêncios e as cinzas

E deixaria que a vida me agarrasse pelos pulsos

E me levasse...contigo...

Corpos suados

Na planura de um verso...cheguei

E o silêncio vestiu-se com a tua idade

Cheguei a pensar que eras uma luz

Uma dança emanava da tua fotografia

O canto...a cidade...o riso

Eram anónimos ruídos que a noite trazia

Do outro lado de ti...vi as luzes apagadas

Desci à terra

E encontrei-me com as ranhuras das tuas mãos

Brilhavam fogos dentro de frenéticos suspiros

Abril escapava-se pelo orvalho pousado nas rosas amarelas

E eu não sabia que eras a claridade que espiava a noite

Eras o baloiçar de um vestido feito de gaze carmim

Dentro da tua melancolia moviam-se cobras asiáticas

Danças de luzes foscas

Encontrar-te...

Era beber a geada pelos olhos negros dos melros

Era vestir as aragens que as aves traziam nas patas sôfregas

Era navegar pelas sombras anónimos dos buxos

Era descer a outra terra feita de colinas

Debruçadas sobre a lonjura da solidão

Encontrar-te era exalar o frio húmido das cavernas

Habitar a incerteza

Procurei no balançar trôpego dos mapas

Procurei na astrologia dos suspiros

A amurada dos silêncios...o desbravar da alma

Mas não passei de cal...branca e pura

Desfazendo-se na desordem do tempo

Como uma luz que se alarga em redor dos corpos

Inebriante...sumarenta...vasta

Tatuada em dolorosas e impossíveis geometrias

Mostrando a nudez e a plenitude dos corpos suados

Brilhantes...fugidios...

 

 

Quando nascem flores nos meus olhos

Nasci para ser eu

Não nasci para ser um fato talhado à medida de outros

Nasci de uns olhos claros

Habitei o silêncio e fiz de cada coisa uma intimidade

Não regressei nem parti de qualquer lugar

E vivo a abraçar a estranheza de mim

Conheço a força clara do mar

E bebo da terra os sonhos quebrados

Colho tardes planto oásis

Nasci como uma secreta vela que embala as tardes

Guardo intacta a memória da primeira brisa

Guardo intacta a memória do primeiro abraço

Possuo o êxtase de uma onda a derribar na praia

E a mágoa branca de uma estátua pura

Por vezes perco-me na claridade da paisagem

Por vezes perco-me na exacta proporção do tempo

Sou maré de mundo e solfejo de mágoa

Sou a espera serena o linho branco

Devoro o tempo como ele me devora

E a mim próprio chamo bóia de salvação

Quando oscilo nos braços frios da dúvida

Quando uma auréola de olhar cai sobre mim

Quando nascem flores nos meus olhos.

Barco solitário

No fim...

Tudo voltará a ser como nos primeiros dias

O céu pouca atenção nos prestará

As aves serão apenas passagens

E o verão...

Será como um molhe atado ao nosso corpo

Um barco solitário com tranças de espuma

Na limpidez dos olhares veremos corações

Versos surdos à intempérie

Paralisados pelo asco das migalhas

Que restam na mesa suja onde comemos

Bastava uma palavra

E todas as cicatrizes da memória ficavam curadas

Bastava um abraço...um apertar de lumes

E um cheiro de vida floresceria

E tudo seria água fresca

Escorrendo pela milenar fonte da nossa alma

Mas há a insónia

Esse navegar pela noite

Esse mastro atacado pelo escuro

Nunca cheguei a saber

De quantas letras precisava para chegar a ti

Nem a quantidade de véus opacos que sobrevivem aos sonhos

Mas há ainda o cheiro do quarto esvaziado de nós

Mas há a penumbra onde ainda te vejo...despida

Tão jovens e com tantas coisas dentro

Que até os suspiros

Eram beijos onde as lágrimas pousavam

E perante a incerteza das águas

Desfizemos a ternura em charcos lamacentos

Avançámos...

Deixámos na nossa esteira uma sombra em branco

E os peixes diziam

Que a vida era a espuma que se colava aos nossos pés

E as estradas diziam

Que a vida era o pó que se colava ao nosso corpo

Mas nós...nada dizíamos...apenas olhávamos o ar

Parados...na vida...





Sal e sangue

Era uma pedra preciosa...uma saudade

Um porão deitado num estreito mar

Agarrei-me a ela como se agarrasse o outro lado da rua

Caminhei...senti as primeiras chuvas

E o barro dos corpos ocultos pelas miragens

Avistei ilhas..separei-me do meu corpo

E esperei que a alegria acabasse

Pelas tábuas do soalho

Vi deslizarem cios e cantos de cigarras...noites quentes

Membros entrelaçados na milenar forma de amar

Subi ao esquecimento das águas

Senti a vibração opaca da alma

E foi como se avistasse a luz

Que irrompe do sono mais temido

Sono ou ar? Alma ou falésia?

Trigo ou vagas embebedando-se nos bordos dos navios?

Ácidos deuses esperam por nós

Rubros esquecimentos irão encontrar-nos

Avistaremos as sombras...os mastros...as sílabas..

Mas porque nos desviamos da alegria?

Porque evitamos essa pátria que se nos pega à pele?

Cansaço de mãos...

Sono perscrutando o ventre das espadas...cortantes frios

Nos mapas desconhecidos há ácidos cios..fomes...saudades

E ardendo no sol tactuado com miragens

Vejo espelhos...lumes...cascos...galopes

Vejo todas as coisas que ardem no medo

Vejo as raízes...as sementes...o frio do mundo

E vejo redes que pescam vidas calejadas por nevoeiros

Como muros de pedras desfazendo-se na água fresca

Paralisados em tons de ocre dourado

Como minúsculas certezas...

Como oxidações de almas ruborizadas pela fome

De ser sal...e sangue vivo...

Peixes voadores

Deixa que te lembre daquele tempo

Em que as casas tinham jardins

E dos dias em que os pássaros

Afinavam o canto por entre loiros trigos

Não basta saciar o rumor dos dias

Nem o sono das vagas

É preciso muito mais de nós

Sabes que a todas as horas se morre

A todas as horas o nosso corpo se oxida

Perscrutando as falésias que suspiram por ventos calmos

Magoados medos alastram pelas intempestivas manhãs

Incertos como águas

Escorrendo pelos fios dos dias

Como breves sombras tardias

Avançamos sobre todas as coisas

Que se perdem no nosso esquecimento

É hoje...dizemos...mas não é hoje

Hoje somos como aquáticas plantas

Tatuadas na sombra dos salgueiros

Quem se esqueceu de levantar os olhos

E suspirar por uma terra suave

Talvez nunca tenha encontrado um sol que brilha na noite

Nem uma mão calejada pelos pontos cardeais

Avança-se e pronto

A alma comparece onde é chamada

E depois ouvimos as vozes dos peixes voadores

A subir por nós...

Como sonhos...ou como tempestades.

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