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folhasdeluar

A minha poesia, é a minha incompreensão das coisas.

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A minha poesia, é a minha incompreensão das coisas.

Estórias de não contar

Estou sentado a ler um poeta.Há algumas pessoas na sala, mas passam despercebidas. Estão embrenhadas nos livros. Por vezes movimentam-se nas páginas como quem está a dormir e se volta entre dois sonhos. Ah, como é verdadeiramente bom estar entre pessoas que lêem. Porque é que elas não são sempre assim? Podes aproximar-te de uma e tocar-lhe ao de leve: ela nada sente. E se, quando te levantares, deres um leve empurrão ao vizinho do lado e pedires desculpa, ele faz um gesto de assentimento para o lado de onde veio a tua voz, o seu rosto vira-se para ti e não te vê, e tem o cabelo como o de alguém que está a dormir. Como isto faz bem! E eu estou sentado e tenho um poeta. Que destino! Mas vê bem que destino me coube: eu, o mais indigente de todos estes leitores, tenho um poeta. Embora seja pobre. Embora o fato que todos os dias visto já comece a apresentar algumas partes coçadas pelo uso, embora os meus sapatos possam merecer reparos. Eu, tenho um poeta. As minhas mãos são lavadas quatro a cinco vezes por dia. Sim, a unhas estão limpas, os pulsos estão irrepreensíveis. Mas há certos indivíduos, que param nas avenidas, que não se deixam enganar, não dão qualquer importância aos punhos. Vêem-me e sabem-no. Sabem que eu, de facto, lhes pertenço, que estou apenas a fazer um pouco de comédia. Muitas vezes dou-lhes algumas moedas e tremo ante a possibilidade de eles recusarem. Mas aceitam-nas. E tudo estaria bem se não sorrissem ironicamente e a piscar o olho. É verdade que a minha barba está pouco cuidada e faz lembrar um pouquinho as suas barbas doentes, velhas e descoradas que sempre me impressionaram. Mas não tenho eu o direito de descuidar a barba? Mas aqui, meus caros, estou protegido de vós. É preciso possuir um determinado cartão para entrar nesta sala. Este cartão é o meu previlégio perante vós. Ando pelas ruas, e encontro-me perante uma porta de vidro, abro-a como se estivesse em casa,apresento o meu cartão na porta seguinte, e depois encontro-me entre estes livros , estou separado de vós, como se tivesse morrido, e sento-me a ler um poeta.

Não sabeis o que é um poeta?  - Verlaine...nada, não há memória? Não.

Mas este meu poeta sabe coisas, sabe tantas coisas sobre raparigas e eu gostaria de saber também muitas coisas sobre elas. Talvez um dia quando morrer, encontrem numa gaveta da secretária de mogno dele as suas cartas amareladas e as folhas soltas dos seus diários, onde figuram aniversários, ou festas de verão. Oh, que feliz destino o de estar sentado na sala silenciosa. Estar sentado e olhar para uma estria quente do sol da tarde e saber muitas coisas sobre raparigas do passado e ser um poeta. E pensar que também teria podido ser um poeta assim, se tivesse podido morar em algum lugar, em qualquer sítio do mundo, numa das muitas casas de campo fechadas, com as quais ninguém se preocupa. Apenas precisaria de uma única divisão (o quarto debaixo da empena do telhado.  E teria uma poltrona e flores e um cajado resistente para os caminhos pedregosos. E mais nada. Mas as coisas aconteceram doutro modo, sabe Deus porquê. Os meus móveis antigos apodrecem num celeiro, onde me permitiram que os depositasse, eu próprio, sim, meu Deus, não tenho telhado que me abrigue e chove-me nos olhos.

Créditos - R.M. Rilke - (adaptado)

Meada

Fio de meada sem fim

Bosque de gente sem alma

Austera fonte

Mitológica sombra a acenar ao esquecimento

Guitarra transparente

Som de memória sagrada

Gente feita de silêncio

Descalça segues pela obsessão do vazio

De ti e da melódica harpa

Que encanta o tempo...que corrói o frio

Ressaltam breves lendas

Em ti respiram branquíssimos sóis

Em ti incham as veias do mar

Por dentro de ti avança a fúria dos séculos

E pensas que o pensamento vive no labirinto

Onde os instantes são remos feitos de espelhos

Atentos à dissolução das memórias...

O barco negro

O barco negro...traçou no medo

Um rasto incerto

Correu nas águas... marcou as ondas

Sorriu ao tempo... agreste tempo...

 

O barco negro... sulcou o medo

Olhou atento... o mar incerto

O barco negro... fugiu do medo

Olhou os astros... cortou a espuma

 

O barco negro... seguiu a rota

Esqueceu a morte...

 

O barco negro... era um pensamento

Era um silêncio... era uma pressa

De mar sem tempo...

A sagrada palavra... Liberdade - 25 abril sempre

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Nenhum homem está inteiro se lhe faltar a liberdade. Cada um é livre na medida em que se expresse livremente. Cada um é livre quando não se verga ao teatro da ignorância. E quando a sua alma respira pelo poros da luta contra as manobras dos ditadores. Hoje o conceito de liberdade, é alvo de manipulação por gente que, secretamente, anseia pela ditadura. Gente que vive num descampado de ideias. Gente absurda, com uma linguagem político-ideológica parecida com o sussurro dos regatos antes de caírem na catarata e que quando  se despenham arrastam tudo na sua correnteza. Hoje, a informação devora-nos com falsidades. Hoje a informação é um astro denso. Um labirinto destinado a enganar aqueles que não pensam. Porque os que pensam, e acreditam nessas ideias feitas com o obscurantismo,e que são como trepadeiras que se enrolam ao pensamento, e que acabam por estrangular a liberdade, esses, esses não têm perdão. A informação é hoje um alvoroço de imagens e palavras de onde emergem tenebrosas e opacas formas de política-espectáculo. E um perigo maior espreita. Um íman de ideias falsas que atrai os incautos e os saudosistas. Mas pensem, pessoas, pensem. Pensem nos vastos horizontes que podem ficar tapados por hordas de gente ajoelhada. Não nos ajoelhemos. Não nos deixemos manipular. Ergamos o rosto ao vasto sopro de ser livre. Sejamos fecundos lutadores que cintilam nestes tempos negros. A vida é um fruto que devemos colher com alegria. A vida é um apurado terraço onde nos podemos fitar como seres humanos. Não baixemos o olhar. A liberdade não custa nada. Mas pode custar a vida. E se assim tiver que ser, antes dar a vida por um sopro de liberdade, do que submergir a alma no atoleiro da escravidão. Bebamos dessa liberdade como quem saboreia um precioso vinho. É da nossa natureza sermos livres. É da natureza de todos os animais serem livres. Como podemos nós sucumbir ao que é anti-natural? Como pode alguém viver em asfixia? Como podem aqueles que nasceram livres construir a sua própria gaiola? Que um clarão de sabedoria destrua esta desgraça. Que cada um assuma a sua liberdade. Que cada um seja um elo que forma a cadeia dos seres livres. E perante a palidez dos tempos, que cada um seja o arauto do livre-pensamento. E se assim for, e se assim acontecer, que cada um seja o purificador destes tempos austeros. Que nenhum homem digno desse nome se vergue ao reescrever da história. Que todos os homens dignos desse nome sejam a raiz, de onde nasce a sagrada palavra, liberdade.

 

Dedicado a Alexei Navalny e a todos os que dão a vida em prol da sagrada Liberdade.

Estórias de não contar

Armo-me de coragem e de melancolia e confesso sem qualquer rubor ter pecado contra todos os mandamentos da lei de Deus, mas penso que já me fizeram pagar a penitência a preço muito elevado e que não seria justo que agora, que vou morrer, agora que já ouço a morte a repicar na aldraba da porta do meu quarto de dormir e de morrer, me mandassem para o inferno para continuar a arder pelos séculos dos séculos, é provável que o inferno esteja vazio, se calhar no inferno nem lá está o Judas e eu considero que seria muito desairoso lá acabar, bom, nem sequer acabar, ver-me ali a arder na infinita solidão e pela infinita eternidade. Há já mais de um mês que o fantasma da morte mija todas as noites pelo cano da chaminé da minha alcova, parece que me quer avisar com o seu riso histérico, as suas malévolas ameaças e a suas descaradas javardices. O demónio Belzebu Seteventos, que era de Seixomil, na província do Minho, tinha uma pomba torcaz que não punha ovos de ouro, isso é só algumas galinhas, é do domínio público que não punha ovos de ouro mas que fabricava no intestino bustos de ouro de Salazar muito bem desenhados, e que todas as primeiras segundas-feiras do mês expulsava pela referida conduta. Segundo o cardeal Cerejeira, o nosso catolicismo não estava em condições de assimilar o concílio, por isso, o melhor, é continuarmos hereticamente pecadores.

Créditos - Camilo José Cela - A Cruz de Santo André - (adaptado)

Os degraus


                                                    O perfil da minha sombra

                                                            sobe os degraus,

                                                   o tempo é uma pedra sob

                                                               os meus pés.

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