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folhasdeluar

A minha poesia, é a minha incompreensão das coisas.

folhasdeluar

A minha poesia, é a minha incompreensão das coisas.

Tudo funcionava perfeitamente

O tempo passava

Numa alvura de febre inexplicada

Os anos preocupados discorriam

Sobre as prendas que dariam aos dias

E imprudentes melodias surgiam nos pés descalços

A hilaridade foi lograda pela neve rosa de Novembro

E os magníficos bosques

Apresentavam fendas abertas para o céu

Serenamente a lua cintilava

Enfeitiçada pelas aves negras

E as sombras caíam das árvores

Varridas pelo frio glacial

As horas submergiram-se nas lâmpadas eléctricas

Gastas e rugosas como é o que é velho

Os espíritos absorveram conversas animadas de tédio

Vertendo para os cálices o seu Porto Vintage

Homens de braços curtos

Esculpiram sapatos de pedra

E calçaram luvas amarrotadas

Junto à meia-noite duvidosa

Mágicas temperaturas exerciam pressão

Sobre os cabelos entrelaçados

E mágicas esperas absorviam a inércia

Em lareiras de pedra fumegante

A inconsciência manuseava livros

Habituados ao silêncio

E perante as explicações pacientes

Das mesas desocupadas

Escoavam-se poliglotas retóricas

Sobre romances fleumáticos

As pessoas circulavam de mão em mão

Como Invernos filosóficos

E a combustão das distrações

Gerava uma onda de teatro alugado

Que o amor físico lastimava

Como se fosse uma doutrina chegada do céu

Brutalmente o furor apossou-se das camas e dos lençóis

Como se os cabelos castanhos

Usassem unhas loiras

E fosse obrigatório passarem a noite

Na profundidade da planície

Para que a pureza dos sofrimentos

Fosse honrada pela anatomia dos navios

Que sublinhavam de boca escancarada

A erudição balofa dos diamantes

A vida inconsciente e fúnebre

Sofria de mistérios e não sabia quem era

E o sistema nervoso negou ao cérebro

A passagem para animal inferior

Tudo funcionava perfeitamente!

Um ridículo embaraço

O caixão avançava sem vida

Pela rua dos marginais

Os acólitos... de rostos pontiagudos

Vagueavam agarrados ao turíbulo

Espalhando incenso pela periferia dos nus

Compreendi que os sorrisos ossudos

Gargalhavam fórmulas consagradas

E que o caixão reluzente

Projectava um ridículo embaraço nos passantes

Todos tinham o seu lugar no cortejo

O sol...a solenidade...e as caras pálidas

Os beiços...os narizes... os apaixonados

E as perguntas idiotas

Cada ângulo do silêncio era uma bofetada

Um esconderijo sacrossanto

Havia qualquer coisa no ar

E não era o cheiro a sal

Porque o que chegava até ali

Era uma chaga insossa

Um peso de terra vazia

Toda a gente comentava

Que os campos levam às colinas

E que os caixões

São o meio de transporte para os céus

E todos se alegraram

Afinal..quem não gostaria de fazer caretas a Deus?

Quem não gostaria de se esconder debaixo de um insecto?

E...como uma paixão profunda

Lá seguia aquele pobre apaixonado

Carregado de flores

Como um pobre sem sombra

Encerrado numa verdade...

Que lhe dizia...que é difícil acreditar

Que há silêncio na luz

E paz na irrealidade...

O temporal que nos assola

Inventar...é o que precisamos

Dizer que já não nos queremos lembrar de nós

Dizer que queremos ser outro

Que queremos sentir que somos outro

Que despontamos com o azul

Que nasce dentro de nós

E depois...não há amarras

Já nada nos prende aos nossos fantasmas

Tudo o que havia para ser

Fomos...não fomos

Ficámos...partimos...existimos...existindo

E por entre a chama

Que se desprende da nossa alma

Sopramos para dentro de nós

O temporal que nos assola

Perante o rubro vigor dos dias

Criamos longínquos sonhos

 

Impossíveis soluços

Desprendem-se do ar que nos visita

E através da espessa neblina

Que se ergue em nós

Sabemos que é inútil carregar a vida

Como se ela fosse um caminho

Que vai desembocar numa subida...íngreme

Sem música e sem sol

Apenas como um espinho

Que em desvario

Resolveu fazer-nos rir...rir...rir...rir...

Nos abismos nasce a vida

A noite é pouca para tantas dúvidas

Os caminhos são tantos para tão pouca luz

No regaço branco dos desertos

Reconheceremos as saudades que não sentimos

Na intemporalidade desponta a ingratidão dos dias

Nas gavetas dormem retratos de vidas

E no bolor dos meses recuperamos sorrisos

Caras que se desfizeram

Sopros que se fecharam

E ao mesmo tempo...

Tanta coisa inútil a chamar por nós

Tanto crer...tanto desacreditar

Que até chegamos a dizer

Que nos abismos nasce a vida.

A paz das coisas que não dizemos

Digamos no silêncio

O que não temos coragem de dizer

Encontremos no sossego

A paz das coisas que não dizemos

Fogo e brisa...relento e desejo

Caudal de gelo a consumir o fogo

Olhos de séculos a abraçar fantasmas

É preciso dar um nome à ternura que não damos

É preciso soltar as amarras

Que nos prendem ao chão insano dos dias

E quem não pode mais

Que pouse os braços e siga

Como um mortal sem tempo

Ou como uns braços que não abraçam

O sacristão

A Lolinha Araújo quase ninguém lhe chama dona Lolinha, a verdade é que o único que lhe respeita o tratamento é o Bartolomeu , sacristão da paróquia de Santa Lucília, na praça do Lagar, que é muito atrevidote e quando anda a passear põe ao pescoço um lenço de seda de cor verde com desenhos de flores, tem outro amarelo mas só o exibe quando vai dar uma volta pela praça de Maria Pita, Bartolomeu  Calvário parece um playboy, agora os sacristãos não são como os de antes, agora lêem revistas de amor e fazem palavras cruzadas; o Bartolomeu bebe o vinho da missa e o azeita das lamparinas, também come hóstias por consagrar, é claro, molha-as no chocolate, e masturba-se cruelmente, parece um cão lulu, no confessionário do fundo, o primeiro à esquerda quando se vem da rua, eu vi-o mais de uma vez a incensar as partes com tabaco de cachimbo, com aromático tabaco holandês, e meio asfixiado com tudo muito fechado, esse é um mau costume que lhe pode custar a vida, que Deus o salve!,  às vezes ia lá só para o ver, não era difícil porque estava sempre muito ensimesmado, muito na sua tarefa, dava-me grande coragem vê-lo, zás, zás, como se o tempo se lhe acabasse para sempre.

Créditos - Camilo José Cela - a Cruz de Santo André - (adaptado)

Esta estranha fé no mundo

Esta estranha fé no mundo

Esta estranha estrada em que caminho

Esta estranha fé nas coisas

Que deslizam pelos meus olhos

Não a posso explicar

 

Este estranho estampido

Que ecoa dentro do meu silêncio

Esta estranha fala que não percebo

Este estranho encanto e desencanto

Pesa-me no corpo...desaba-me nas sílabas

Como se os olhos do tempo

Não tivessem tempo para mim...

Parte como quem nasce de si

Se falares nos nomes das coisas

Que descem do tempo

Se desceres dos arpões que se enrolam nas algas

Se uma rajada de vento te arrastar

Para dentro da tua a rutilante alma

Ergue os olhos ao frio que nasce

Lança um brado ao silêncio das pedras

Sopra todo o teu mar para dentro de uma concha... e vai

Parte como quem nasce de si

Inventa luzes como quem conhece o escuro

Desfaz as palavras que se enrolam na alma

Ergue-te como um gladíolo...ou uma espora

Pica o mundo com a tua voz de gelo e vidro

E nascerão flores em ti

E todos os mundos se acolherão em ti

E serás o dono da tua ausência

Terás a lucidez do voo das aves

Possuirás a frágil aragem das manhãs

E verás os nenúfares no centro do lago...felizes!

Tudo o que tu és

Acendem-se os corpos

Nas pétalas suaves do vento

O luar...o mar...

Tudo escorre do círio do tempo

O mel...a fúria...

O retrato que arde na distância de um lamento

Fechada a vida...dispersa a infância

O rio corre agora livre e ágil pelas veias

Os cardos que pisaste

As cordas em que te prendeste

Os caminhos que inventaste

Nada resta das asas com que voaste

Mas lá ao longe...

Timidamente surge a flauta bravia

Surge o canto e o lamento

Surge a voz do tempo...

 

Espalha-se a noite nas pétalas da névoa

As plantas ressurgem frescas e limpas

Gotas de ti assomam à boca da manhã

São como esmeraldas...verdes...esperançosas

São sílabas gastas temerosas

São tudo o que tu és...

O cântaro de latão

Dizem que as coisas procuram quem as ama, e que não somos nós a querê-las mas que são elas que nos querem. Vem isto a propósito do meu gosto e ternura por coisas antigas, andava há muito tempo a ver se encontrava um cântaro de metal daqueles que eram utilizados nas aldeias para ir buscar água à fonte, encontrava muitos em zinco, mas o que eu queria era um de latão, que são muito mais raros. Certo dia numa visita a uma aldeia entrei numa casa( não sei porquê,mas algo me chamou) que estava em ruínas, o chão de madeira tinha abatido, o telhado estava decrépito e uma parte tinha desabado, espreitei e vejo a um canto, sobre uma mesa carcomida pelo caruncho...um cântaro de latão tão bem conservado que não hesitei e trouxe-o...era o meu cântaro...e ele tinha-me escolhido...mas a verdade é que me acontece o mesmo com pessoas, em certas alturas, e no momento próprio aparecem na minha vida...

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