A diagonal...
Faço o que faço todos os dias. Levanto-me de manhã e vou espreitar o rio pela janela. Sinto-me sempre um deus vazio. Invento paisagens e sentimentos. Um dia...dou de caras com uma dessas paisagens que inventei. E descubro que os sentimentos não são inventados. Reconheço que as coisas têm memória. Reconheço que as coisas estão ali para servir para qualquer coisa. Nada é completamente inútil. As coisas foram feitas para serem feitas. Porque é que por vezes temos medo de fazer as coisas? Porque é que temos medo da dissolução de uma saudade? Ou até de sermos íntimos da solidão? A vida vive-se numa diagonal excêntrica. Damos voltas e voltas em redor de um sofrimento lasso. Abruptamente descobrimos a vaidade universal. Descobrimos a presença do desprendimento. E sabemos que o que nos sufoca é o refluir de tudo o que tememos perder. Se olharmos em volta vemos que a vida ali está. Pendendo de um rosto ou de uma árvore. Caindo em cascatas de gargalhadas. Ou em cortantes tesouradas. Há tanta harmonia na chuva intensa. Ela a cair e nós a darmos voltas na cama. Ela a cair e nós a erguermos cúpulas que nos separam da vida. Ela a cair e nós a tecermos altivas perguntas. Que raio fazemos aqui? Porque regressam as manhãs? Porque é que os mares não esgotam as ondas? Somos distraídos talismãs encostados a umbrais acáricos. E não nos damos conta da fragilidade das nossas obsessões. Podemos ficar a um canto a conspurcar a alma com absurdos dilemas. Mas também podemos reinventar o prazer. Ser o instante e a profundeza do mar. Ser tudo o que não está nos livros. Ficar sem palavras. Enquanto de nós escorre um negrume tingido de azul. A tarde...continua...imperturbável. A ser a tarde quebradiça que nos mostra a docilidade... da nossa alma.