Ampulheta
Polifónicas ampulhetas marcam a compasso o tempo dos desertos
Esses desertos onde o tempo é deserto
E é feito com as cinzas da carne coralina.
Aí... onde o sossego é uma transparência de espuma e vento
O nosso retrato é uma espessa mão a acenar ao mundo... a gelar no mundo
Os nossos dedos descarnados cavam o chão da terra...
Barcos sem rumo perdem-se nas vielas
Docas de silêncio encostam-se às luas mais ocultas
Esconsas noites apegam-se ao renascer dos corpos.
Há uma força bruta que se solta da pureza dos ventos
Por dentro das tempestades jazem homens inquietos
Sombras celestes cavalgam a loucura dos homens
No leito do sonho acordam tempestades de fogo
Como feridas de náufragos antigos a tactearem as brumas da poesia.
Passo... e traço um risco sobre a limpidez das casas
Conjugo as horas com as pequenas estrias de uma espada intemporal
Um lago de sangue escorre dos meus braços
Sou a imperfeição das pedras a atear fogos de cristal.
Poderias passar por mim sem que eu perceba a tua sombra
Poderias raspar a minha pele como quem safra a linguagem das medusas
A bem ou a mal aceito tudo o que chega ao fim
Aceito os passos desentendidos do cansaço
Aceito querer-te com se fosses a límpida conjugação do amor
E lamber as tuas feridas com o meu sono de luar e cobalto
Aceito que tudo se resume a uma água que corta a direito...
Uma torrente aflita...um espasmo
E depois...como sei que tudo cai...como uma noite sem fim...
Aceito-te...tal como és!