Como poderia eu ser outro?
De manhã levanto-me e vou ao rio espreitar os flamingos. Eles são o meu buraco no tempo. A minha flácida expressão de vida. A minha subterrânea vontade de me elevar no ar. E também são a minha ligação ao tempo. A um tempo de que não me lembro bem...mas que persiste estranhamente na minha alma.
Sinto que não sou mais do que um suspiro que busca o equilíbrio na fragilidade do mar. Sinto na vibração das árvores o calor silencioso dos raios de sol. Recorto o meu corpo contra o poente. Garças voam num bailado desalinhado. Reteso o corpo. Rebusco na nudez das ondas os pedaços dos meus pensamentos. Dolorosamente quebro-me como uma tela vazia. Pigmento a pigmento. Sou a partícula ensimesmada de mim mesmo. Sou a rocha e a conclusão da tarde. Não me censuro. Não me espero. E um dia serei o travo metálico da faca que me atravessa. E penso...como poderia eu ser outro?