Como quem desfralda a vida.
É possível que um dia acorde e sinta que me falta qualquer coisa. O som de um sino antigo. Ou o grasnar de um corvo. É possível que me ponha na sombra e me deixe flutuar como um altiva ave. É possível que cisme na minha indolência. E não me espante com a acalmia do mar. É também possível que sinta que a minha salvação está em imitar um girassol. Entretanto...mastigo a minha falta de jeito para andar dobrado. Prefiro descruzar as pernas e andar sempre distraído. Como se todos os dias fossem mais ou menos uma inauguração de mim. É possível que solte um desabafo e ache que o melhor é viver numa cabana. Como um monge imperial. Ou com a teimosa tendência de achar que os ciprestes são árvores de rapina. O Van Gogh é que gostava de ciprestes. Eu também gosto!Acho que são árvores que descrevem o enigma escorregadio das nossas vidas. Ou o céu dos descrentes.
Jamais sentirei que uma coisa me faz falta. Sou auto-suficiente. Abasteço-me com o meu assombro ou com a inteligência das formigas. Acho que sou mesmo uma formiga. Estarei enganado? Possivelmente! Talvez um dia... que ainda há-de vir ….compreenda porque envelheço. Até lá...só quero saber dos lunáticos espasmos do horizonte. Penso no que haverá dentro de uma pedra fechada. De uma mão fechada. De qualquer coisa que esteja fechada. Como o coração, por exemplo. A chuva faz florir as flores. A geada queima-as. Afinal há sempre uma enorme espada sobre a nossa cabeça. E há as ruas sujas. Tão sujas que até apetece cambalear por elas com sulfúricos passos enviesados. De repente...sinto uma mão crispada. É o universo a alertar-me para a ternura delirante dos dias que se refletem nas folhas das árvores. Mas eu....herdei o sobressalto. E caminho de olhos vidrados. Como quem desfralda a vida.