Intervalo
O futuro afunda-se em nós. O futuro é a delimitação do espaço da nossa esperança. Ter esperança no futuro. Que ideia! Ter esperança no futuro é o mesmo que tiritar de frio. Ou mergulhar num rio de água gelada. Tenho pouca esperança no futuro. Tenho mais esperança em mim. Quase nunca penso no futuro. Prefiro olhar as cores do horizonte. E imaginar que são o meu futuro.
Gosto de inventar uma realidade. Gosto de sentir a gratidão de uma sombra. Ou de uma revoada de pássaros. E também gosto de respirar a tristeza da tarde. Há um vazio calmo na tristeza de uma tarde. Nas traseiras da minha casa há um jardim cheio de folhas secas. Ninguém apanha as folhas secas. Mas eu gosto das folhas secas. Também gosto da poeira que se vê em em contraluz. Na sombra não se nota nada. Só em contraluz. Assim deveriam ser as pessoas. Devíamos poder ver o seu pensamento...em contraluz.
Se há coisas de que gosto...é de olhar. Deixem-me olhar. O intenso crepitar das pessoas na rua. A luz que resvala na água. A secreta maresia de uns belos olhos. A furtiva transfiguração de um rosto. Deixem-me olhar essa chuva. Esse manto de poesia que cai do céu. Deixem-me olhar o espanto das flores e a desagregação do grito. É preciso olhar para tanta coisa. Para a pequena fracção de nós que não se quer ver. Para o silêncio que brilha num sorriso ténue. É preciso olhar para tudo..porque tudo vive no intervalo de nós.