O peso da chuva
Separo a música. Escolho um disco. Quero ouvir um fado. Ou outra música mais áspera que me faça despertar. Espalho pedaços de rosas por toda a casa. Olho a tartaruga embalsamada. Todas as coisas me parecem outras coisas. Tudo tem uma metade e uma outra parte. E a incessante luz continua a escoar-se pela janela. Decido-me... quero jazz. Ponho Thelonious Monk. Acendo uma vela. Até as velas são outra coisa. São chamas brutais. São o ensaio da eternidade.
Em cada nuvem encontro um destino. Nas janelas sujas um arremedo de tristeza. Nas sacadas já não se seca a roupa. As casas estão rasgadas. A chuva pesa. O ar pesa. O crepitar das pessoas arrepia-me. As ruas estão sujas. Têm pássaros podres e restos de teclas de piano. Abro passagem pelo cheiro a musgo dessas ruas. Estou instável. Precisava de um remendo em qualquer lado de mim que desconheço. Precisava de outros cheiros e de outros silêncios. Faço desenhos de trampolins. Não sei se quero mesmo ser eu um trampolim... ou um sáurio. Ou então serei um pedaço de lápis negro que tem todo o poder de desenhar o que eu quiser. Faço um traço. Depois um coração. E acabo dormitando sobre o sonho de um cometa.