Que bem se está aqui!
Carrego comigo a pele luzidia do passado. Cada passo que dou é um prego cravado na vida. Sei quem sou. Adivinho-me nesta rua empanturrada de gente. Que chatice não saber quando virá o futuro. Que aborrecimento ver o esfumar da compreensão. O desabar de um corpo que julgava ter. Mas que já não é o mesmo. E penso em como conseguimos morrer sem o saber. Como conseguimos deixar para trás as nossas peles rosadas. Como vamos ao encontro dessas ridículas mortes. Contentes e inocentes. Somos inocentes. Estamos inocentes. O nosso crime foi apenas o de sermos feitos de carne e osso. E brindamos à nossa própria despedida. E sabemos de cor todas palavras do nosso epitáfio. E compreendemos toda a extensão das nossas estrofes. Toda a dimensão dos nossos poemas. Poemas. Somos poemas que nunca acabamos. Somos poemas que nunca começamos. Somos poemas que passamos. De mão em mão. De olhar em olhar. De sentimento em sentimento. E um dia dizemos adeus. Aos choros. Às cidades. Às mais nítidas recordações. E penso. Quantas pausas fazemos? Por quantos intervalos passamos? Quantas vezes semicerramos os olhos? Ali ...parados entre o momento em que somos. O momento em que não somos. O momento em que somos e não somos. Tudo ali misturado na nossa mortificada incompreensão. E subitamente...na imobilidade do nosso coração...tudo se completa. A nuvens emergem da nossa alma. O mundo é um eremitério onde discretas torrentes de água assomam aos olhos. O canto dos pássaros sufoca os sentimentos. Divinas angústias assolam a tarde. E eu sorrio. Abro a janela. Pego com mãos de criança na minha ingenuidade e digo: - que bem se está aqui!