Sou apenas ar...
Escavo as formas da cidade
Longe de mim pensar que na sedução da chuva há um festim
Na penumbra dou nomes às coisas que me habituei a olhar
Ano após ano abro a terra
Crio mundos onde nada obscurece a visão
Divido a noite em pequenos passos
Habituei-me ao fogo dos corpos
E passo pela treva
Como quem quer pertencer apenas a outro tempo
Ou a outro espaço
Por vezes incendeio as ruas
Faço delas argila
Levo-as ao lume brando do fascínio
Germina então nas calçadas
Um sono de estrelas
Um pomar de corações em delírio
Longe de mim tremeluzem os nomes das coisas que invento
Ninguém sabe que ali estou
Sou o lusco-fusco do lume que afaga as paredes
A sombra subalimentada do vazio
Ludibrio os dias com a insónia
De quem não sabe o nome de quem passa
Reconheço nas cores calcárias
Os corações angustiados e a docilidade das trevas
Sei de onde sopram os ventos
Abrigo em mim todos os que querem sonhar
Abrigo em mim todos os vazios da cidade
E as cicatrizes das línguas
Anoiteço e a penumbra senta-se comigo
Nos degraus ensonados da noite
De súbito esqueço-me de tudo
Elevo-me até aos confins dos desolados
Relembro os cantares das cigarras
Passos ecoam na minha pele
Sou apenas ar...