Um lume inóspito...
(Foto Fernando Piçarra)
Tenho medo que as palavras fujam e que o despertar seja apenas um sufoco
E não basta que os espelhos nos sepultem a alma numa candura opaca
Inesperadamente...podemos ser o turbilhão que regressa ao que fomos
Podemos acordar no lugar onde tudo se revelará
A noite será como a cinza apagada...mas dolorosa...uma vontade ou um vestígio
Nunca é tarde para regressar ao branco da insónia
Nunca é tarde para saborear a candura inóspita da alegria
Deixa que eu percorra o teu coração com o meu rosto desperto
Bem sabes que dentro de um esquecimento há um lume aceso...latente...
Um lume inóspito...
Mas cheio de vontade de beber de ti o sumo que revelam os teus olhos
Não basta afiar a memória nem desafiar os tigres
Porque nos becos...a ausência do desejo é um mar apagado e sem regresso
Não basta acordar e dizer: ofereço-me a ti
Não basta acordar e perceber que o mel que saboreamos..é um sorriso
Nunca é tarde para perceber que as palavras estão cheias de sílabas de amor
E que nada pode substituir a brisa carregada pelo perfume nocturno das giestas
Há uma boca...há um dia...há uma noite em que tudo brilha como um gesto pacífico
Nada pode roubar-nos a memória que sepultámos em nós
Nada pode apagar o riso..o rosto...o escorrer dos lábios pela pele serena e doce
Talvez as palavras estejam desencontradas...
Nada nos pertence..nem mesmo o nosso rosto
Somos de outros...somos de todos os outros que não nos vêem..felizes?
Mas sabemos que ainda é possível mergulhar na trepidação dor
Sabemos regressar ofegantes às nossas vozes nocturnas...às cidades obscuras
Onde apagamos os nossos corpos insaciados pelas manhãs...
Nas espirais de ausências e manchas de sal...
Regressar...regressar sempre..ao mar.
Ver ao longe o fogo da espuma a entornar música pela areia
Enquanto no crepúsculo ardem nítidas flores vermelhas
Flores que rodopiam como luminosas manchas estelares
Eixo de corações prestes a extinguirem-se no fundo escuro da praia
Breves...breves como a brisa encapelada dos dias
Que pingam sobre nós...como aguarelas translúcidas...