Uma solitária gaivota
Ele já não sabia quem era. Vivia num armistício com a sua própria vida. Não se revoltava. Aceitava-a. Mas quem era ele? Uma fissura do destino? Um arabesco do acaso? Um garrido estore por onde a luz se escoa? Talvez fosse a fantástica sequoia crescendo no céu infinito. Talvez fosse a brilhante frase do silêncio. Talvez fosse o húmus das emoções. Talvez fosse a restauração do tempo que em si se comprimia. Ou a bilingue distância dos afectos. Mas quem era ele. Ele que se maravilhava com a linguagem das cores. Com o feroz silvo dos ventos. Com a vertigem dos pássaros. Com a ternura de um olhar profundo. Nos seus olhos nasciam raízes. Raízes que penetravam na claridade das paisagens. Como asas de florestas saciadas. Flocos de nudez translúcida. Relâmpagos de memórias estilhaçadas. Quem era ele que se fascinava com as pedras. Com a ascensão das águias. Com a brevidade do crepúsculo. Ele que percorria o tempo vestindo a pele dos espelhos. Que avançava pelo sopro dos horizontes. Ele era a encruzilhada e a cadeira deserta. A vaga sensação de um tempo cinematográfico. A brecha aberta na paisagem. A crista de um poema ondulante. Ele era o que sobrava da sua própria deflagração. Do seu desentendimento com os seus estilhaços. Da sua consciência. Da sua inconstância. Ele era o arqueiro das sombras. Das suas sombras. Mas...quem era ele? Ele era uma gaivota. Era uma solitária gaivota a planar no cinzento da tarde invernosa.